domingo, 25 de março de 2012

Restaurando o altar de Deus

Então, Elias disse a todo o povo: Chegai-vos a mim. E todo o povo se chegou a ele; Elias restaurou o altar do SENHOR, que estava em ruínas. (1 Reis 18.30)

Introdução
Este é um texto muito conhecido da Bíblia, porque mostra o embate entre o profeta Elias e os profetas de Baal. A reflexão que eu quero partilhar, em parte, me veio ao ouvir ontem uma pregação do pr. Marcelo, da Igreja Batista em Maripá de Minas, a quem dou os créditos pelas palavras inspiradoras e pelos insights que geraram em mim.
Ele falou algo que tocou muito o meu coração: podemos repetir a oração de Elias muitas vezes e não ter resultado nenhum. Porque o que devemos imitar não é a oração de Elias, nem suas palavras. O que devemos imitar é a postura de Elias, a obediência de Elias, a consagração, a coragem, a ousadia, a fé de Elias. Enfim, não suas palavras, mas seu viver. E o apóstolo Tiago diz em sua carta que Elias era alguém como nós, sujeito aos mesmos erros e pecados, mas ele orava e Deus ouvia. Por quê? Porque ele tinha um altar a Deus em seu coração.
O templo de uma igreja é um lugar muito importante para nos proporcionar unidade, comunhão, oportunidade de receber uma ministração especial, de estar em torno da mesa. Mas o altar que o Senhor mais preza está em nosso coração. Se este altar não estiver pleno, inteiro, ornamentado, então o sacrifício de louvor e adoração não poderá ser oferecido. Antes de vir o fogo do céu e consumir com sua glória o sacrifício sobre o altar, este teve de ser restaurado.
Deus quer receber você na glória Dele. Deus quer te encher como você nunca foi cheio, cheia, em sua vida! Mas o altar tem de estar preparado. Esta é a parte que toca a cada um de nós. Preparar o altar de Deus, que é o nosso coração. Templo de Deus somos nós, alerta o apóstolo Paulo. Como está o seu altar hoje?
As pedras do altar
Quero que você reflita sobre isso. O altar era feito de pedras. A pedra é um símbolo de durabilidade, de força, de resistência ao tempo e às intempéries. Tudo o que é feito em pedra dura. Daí termos até hoje estátuas, pirâmides e outras obras de culturas milenares. As pessoas se foram, as civilizações se foram, mas seu legado persiste porque foi esculpido em pedra. E Deus quer que seu altar seja duradouro, forte, resistente. Que tipo de pedras precisamos usar para ter um altar que agrade a Deus? Vou listar algumas, mas há muitas mais:
1)      A pedra da verdade: Justiça e verdade são a base do trono de Deus (Salmo 111). Então, devem ser a base de seu altar também! A verdade tem a ver com caráter. Uma das demonstrações de um caráter fraco é que a pessoa conta mentiras para fugir à sua responsabilidade. Vive usando máscaras, escondendo seu verdadeiro eu. Mas a mentira não se sustenta para sempre. E quando ela cai, tudo o que a pessoa é ou acredita vai por água abaixo. A verdade, por outro lado, paga o preço necessário para sustentar-se e, por isso, resiste a tudo o mais. Pense na sua vida: se você é uma coisa aqui na igreja e outra lá fora, então você precisa restaurar a pedra da verdade. Se você faz coisas que ninguém pode saber ou que tem vergonha se alguém descobrir, então precisa da pedra da verdade. Seu altar está incompleto, caído e não vai ser possível ofertar nada a Deus sobre ele. Seu coração está partido, quebrado, dividido. Deus não compactua com a mentira, ela é do diabo! Então, hoje, verifique seu coração e restaure essa pedra. Deixe de lado o engano, a hipocrisia (que é parecer uma coisa que você não é). Não pareça, seja! Assuma realmente este compromisso e restaure nesta noite o altar de Deus em sua vida!
2)      A pedra da fidelidade: Talvez você até tenha tido uma vontade inicial e disse a verdade para Deus. Mas você fica coxeando entre dois pensamentos. Uma hora está bem, outra hora está mal. Você se diz amigo de uma pessoa mas fala mal dela pelas costas. Você diz que gosta do seu emprego, mas frauda o seu patrão fazendo coisas no seu horário de serviço que não deveria fazer. Você diz que ama sua namorada ou esposa, mas olha com desejo para outras mulheres ou se perde em pensamentos sensuais e pecaminosos. Você diz que ama seu esposo mas nunca tem disposição para agradá-lo e amá-lo um pouco mais. Você diz que está preocupado com seus filhos, mas não sabe quem são os amigos dele, por onde ele anda ou em que sites navega na internet. Falta a você fidelidade! E o que dirá de Deus? Se algo não agrada a você na igreja, imediatamente você deixa de congregar. Se alguém bajula você, logo imagina que seria melhor ir para a outra igreja porque o pastor de lá te ama mais do que o seu... Fidelidade é a capacidade de ater-se ao seu compromisso – com Deus, com sua esposa, com seu filho, com sua igreja... É a habilidade de dizer não àquilo que contraria a aliança que você fez... Restaure seu altar colocando hoje a pedra da fidelidade. Deus quer que você seja alguém fiel – comprometido, firmado na palavra, digno de confiança!
3)      A pedra do arrependimento: O povo pecou contra Deus, indo atrás de outros deuses. E Elias restaura o altar antes de clamar ao Senhor. O povo tem que ver que a adoração a outros deuses fez com que o altar fosse pisoteado, chacoalhado, tirado de seu lugar, contaminado. Ele lava ali várias vezes com água também para sinalizar essa purificação. Você e eu precisamos nos arrepender. Precisamos reconhecer nosso pecado: nossa autossuficiência, nossa arrogância, nosso orgulho, nossos atos vergonhosos, nossos maus hábitos de vida, nossa petulância... tudo isso derrubou o altar de Deus em nosso coração. Outros deuses entraram: a ganância, o dinheiro, o sexo, o egoísmo, o vício... Esses deuses estragaram a obra que Deus estava fazendo e o altar está quebrado. Arrependamo-nos! Vamos pedir a Deus que tenha misericórdia de nós e nos dê a oportunidade de ainda ver o seu fogo caindo sobre as nossas vidas...
Conclusão: Eu poderia listar muitas outras pedras: a pedra da fé, por exemplo, ou a pedra da santidade no falar. Poderia incluir a pedra da entrega total e quem sabe até a pedra na boca do túmulo do velho homem, que precisa ser sepultado... mas essas três servem para você começar a refletir sobre o estado de seu altar. O estado do seu coração hoje, diante de Deus. A oportunidade de ver o fogo de Deus cair sobre sua vida é hoje! Hoje mesmo você pode clamar a Deus, não com as palavras de Elias, mas com as suas, e ver o fogo cair e consumir tudo o que você trouxer com alegria a Deus, fazendo subir um aroma suave diante dele! É possível, hoje mesmo! Se o altar estiver restaurado... se as pedras estiverem no lugar... Se você quiser fazer esta restauração, Deus está pronto para responder com fogo, com poder, com glória, com amor. Deus está pronto a manifestar sua presença na sua vida. Basta a você entregar seu coração, clamar por ele... Faça isso hoje mesmo e veja seu altar se tornar uma morada permanente de Deus! E com um fogo que nunca se apaga!

terça-feira, 20 de março de 2012

Odiar dá trabalho

Odiar dá trabalho, guardar ressentimento cansa. Hoje, já liberta de antigas dores, fico me lembrando de tanta energia desperdiçada, chorando pela amargura sofrida. Mas quão bom é liberar o perdão. É difícil a princípio. David Seamands diz que "perdoar é abrir mão do direito de ficar com raiva". Sim, ninguém gosta de abrir mão de direitos. Mas é libertador fazer isso. Não posso impedir ninguém de magoar-me. Mas eu tenho o poder de não me sentir magoada. E quero fazer uso disso, pois estou investindo em mim. E isso é importante.
Dizem que Alexandre Dumas estava andando pela rua com um importante amigo, quando um mendigo passou e cumprimentou-o. Ele respondeu amavelmente e o amigo lhe disse: "Mas este homem não pertence à nossa classe social! Por que se perturba em cumprimentá-lo?" Dumas respondeu: "Uma vez que nossa classe social lhe parece, caro amigo, ser assim tão superior, como poderia eu ser menos educado do que o mendigo?"
Sim, odiar dá trabalho... e às vezes, você e eu, com nossa pretensão de sermos superiores porque cremos nisso ou descremos daquilo, só demonstramos nossa inferioridade humana. Reconhecer isso é o primeiro passo para a verdadeira grandeza.

sexta-feira, 16 de março de 2012

A Igreja do Diabo - um conto de Machado de Assis

Longe de mim as polêmicas. Abomino-as com ódio consumado. Mas a gente tem que exercer uma fé que pensa, diz John Stott. E não pude deixar de lembrar o famoso conto de Machado de Assis ao ler a notícia recente de que um templo ateu está sendo construído. Templo e ateu numa mesma frase já é um paradoxo. Enfim... lembrei a sabedoria machadiana. Veja se a conclusão do conto não tem tudo a ver com nossa realidade. Os escritores antigos sabiam das coisas... É para pensar!

A IGREJA DO DIABO

                                                                                       Machado de Assis
Capítulo I - De uma idéia mirifíica
     Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
- «Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo».

      Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo:
- «Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul».

Capítulo II - Entre Deus e o diabo

      Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
- «Que me queres tu? perguntou este».
- «Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos. - Explica-te».
- «Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...»
- «Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura».
- «Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco».

      Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
- «Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor».
- «Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental».
- «Vai».
- «Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?»
- «Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?»

      O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer cousa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse: - «Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...»
- «Velho retórico! murmurou o Senhor».
- «Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quais - quer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em cousas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...»

      Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.
- «Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?»
- «Já vos disse que não».
- «Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?»
- «Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega».
- «Negas esta morte?»
- «Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...»
- «Retórico e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!»

      Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

Capítulo III - A boa nova aos homens
     Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
- «Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...»

      Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil, outras cínica e deslavada.

      Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: «Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu»... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
      As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
      Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

      E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada. pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
      Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era urna simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: «Leve a breca o próximo! Não há próximo!» A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

Capítulo IV - Franjas e franjas
    A PREVISÃO do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
      Um dia. porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
       A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o rocedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calavrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
      Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:
- «Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.»

segunda-feira, 5 de março de 2012

Ensina a criança no caminho em que deve andar

Eu estava voltando de um culto abençoado em nossa congregação, em Itamarati de Minas. Minha filha tinha ido comigo ao invés de permanecer com o pai, na igreja-sede, em Cataguases. Eu a tinha convidado para fazer um solo no culto. Sentada ao meu lado, no escuro da estrada, ela, de repente, me disse: “Sabe, mãe, eu hoje senti Jesus tocar meu coração no culto da manhã. Eu nem sei como eu me sinto quando Jesus toca meu coração assim. Eu abri o meu coração para ele hoje”.
Eu fiquei emocionada demais... Amanda tem apenas oito anos. Consternada, eu disse a ela: “Que bom, minha filha. Temos de abrir nosso coração a Jesus muitas vezes ao longo de nossa vida. Às vezes, ele quer se fechar para Jesus. Se a gente deixar, pode ser para sempre. Temos de manter a porta aberta.”
Então, ela realmente me surpreendeu, declarando: “Mas eu acho que ter pais pastor e pastora facilita abrir o coração para Jesus.”
Eu perguntei: “Por quê?”
E ela me disse: “Porque eu vejo as pessoas indo lá em casa e vocês falam de Jesus para elas e às vezes eu escuto. Então fica mais fácil porque vocês são pastores.”
Confesso que fiquei sem palavras. Voltamos cantando um hino que estava tocando no CD. E eu pensando: “Meu Deus, que seja sempre assim. Que minha vida facilite para minha filha sempre manter o coração aberto para Jesus”.
Diante de situações consternadoras e sem respostas, como o assassinato recente do bispo anglicano por seu filho; ou de tantos filhos e filhas de pastores que abandonam a fé, a palavra da minha filha me põe contra a parede e inibe qualquer arrogância ou vanglória de minha parte. Ela ainda é uma criança, mas me colocou diante do maior desafio da minha vida.
Desejo, de todo o coração, que quando ela estiver idosa, indo para a glória com o Senhor, ela ainda possa dizer: “O fato da minha mãe e do meu pai serem pastores facilitou para mim o abrir meu coração a Jesus”.
Querida Amanda e querida Giovanna, filhas amadas, eu quero sim, facilitar para vocês, a cada momento, encontrar-se com Jesus, amá-Lo e viver para a glória Dele. Afinal,  de que adianta ser exemplo para qualquer outra pessoa, se não conseguir mostrar a vocês, diariamente, o amor de Jesus?

quinta-feira, 1 de março de 2012

Priscila, Áquila e Apolo: mentoreamento e aprimoramento de liderança

Atos 18.18-28

Investir no dom do irmão
Há muitas teorias acerca da liderança e pelo menos duas posturas: uma diz que a pessoa que é líder nasce com este dom. A outra diz que se pode aprender a ser líder. Particularmente, prefiro acreditar que toda pessoa pode ser uma liderança, pois ser líder, no aspecto mais bíblico possível, é exercer influência por meio de sua vida e levar outras pessoas a seguirem você. Esta é uma capacidade que pode ser aprendida, por meio da vivência da palavra de Deus e da comunhão na comunidade de fé.
Não conhecemos nenhuma pregação de Priscila e não há registros de nenhum escrito de Áquila. Mas, apesar de sua discrição, este casal tem um peso de influência enorme na história da Igreja. Estão associados ao ministério de Paulo e também aparecem no livro de Atos, em diversas referências, como líderes do povo de Deus. No estudo de hoje, veremos sua atuação particular na vida de Apolo, um famoso pregador do Novo Testamento.

Quem foram Priscila e Áquila?
Eles aparecem pela primeira vez em Atos 18. Ali, no verso 2, temos a informação de que Áquila era natural do Ponto. Segundo a Wikipédia, era uma província romana, mais tarde chamada de Bitínia e ficava ao norte da Ásia Menor, ao longo do Mar Euxino ou Mar Negro. Ali, o clima é quente no verão e moderado no inverno. Há muitos vales pluviais, onde se cultivavam cereais. As encostas dos montes eram cobertas de florestas, e produziam madeira para a fabricação de navios. Portanto, ele era proveniente de uma região bastante fértil. Ali também a fé judaica e, posteriormente, cristã, encontrava bastante seguidores. Ainda segundo o site de pesquisas, Filo, escritor judeu do século I d.C., informa em seus escritos que os judeus se haviam espalhado a toda parte do Ponto. Em Atos 2.9, temos a presença de judeus desta região na festa do Pentecostes e, a Epístola de Pedro se dirige, mais tarde, aos "residentes temporários espalhados por Ponto", e outras partes da Ásia Menor (1 Pedro 1.1).
Ele se encontra com Paulo num momento em que estava voltando da Itália, passando a residir em Corinto. Não sabemos, portanto, qual é o lugar geográfico de sua conversão, mas ele, como judeu, entendeu a mensagem de Cristo e, juntamente com sua mulher, passa a apoiar o ministério de Paulo. Eles chegam a viajar juntos (At 18.26) e Paulo lhes dirige saudações na carta aos Romanos (Rm 16.3) e depois informa que havia uma igreja na casa deles (1 Co 16.19). Em 2 Timóteo 4.19, Priscila aparece sendo chamada pelo diminutivo Prisca, e novamente Paulo envia suas saudações ao casal. Isso nos mostra o nível de companheirismo que desenvolveram no ministério cristão.

O casal e Apolo
Enquanto estavam em Éfeso, após terem acompanhado Paulo em sua viagem, Priscila e Áquila se deparam com um jovem pregador, muito ousado, chamado Apolo. Ele parece ter sido alguém de tanto carisma, que, no passado, ao se debater sobre a autoria do enigmático livro de Hebreus, se chegou a cogitar que ele fosse o escritor! Ele era judeu, portanto, conhecedor tanto da Lei quanto das promessas sobre o Messias. E, sendo natural de Alexandria, uma cidade famosa por seus sábios e local onde se realizou a tradução da Bíblia Hebraica para o grego (a famosa Septuaginta), não é de se espantar que ele fosse bem articulado em seus discursos. Provavelmente, tenha ele estudado entre os melhores daquela localidade, assim como Paulo foi aluno de Gamaliel, um dos maiorais do farisaísmo de Jerusalém.
Apolo era um convertido ao Cristianismo e estava muito animado, querendo pregar a todas as pessoas a mensagem maravilhosa que tinha recebido. Porém, sua inexperiência não estava permitindo seu maior desenvolvimento. Percebendo isso, Priscila e Áquila resolvem mentoreá-lo.
O texto bíblico diz que eles “tomaram-no consigo”. Isso significa que passaram a exercer um discipulado pessoal, estando com ele em relacionamento, convivência, comunhão, de modo que ele pudesse aperfeiçoar seus dons e talentos com o que lhe faltava de conhecimento. Eles procuram fazê-lo de modo consistente, explicando “com exatidão o caminho de Deus” (At 18.26). Este casal nos mostra a importância do mentoreamento exercido por cristãos mais experientes, a fim de permitir aos mais novos na fé explorar o potencial máximo de seus dons e talentos no meio da comunidade.

Resultados do mentoreamento de Priscila e Áquila
Os frutos da intervenção amorosa de Priscila e Áquila são evidentes. Podemos listar alguns deles, apesar de não haver muitas referências diretas a Apolo no Novo Testamento:
a)      Liderança reconhecida: Apolo torna-se um pilar na igreja de Corinto e uma influência tão poderosa que está no mesmo nível de Pedro e Paulo em termos de pessoas sob sua liderança (mesmo que isso, infelizmente, ocasionasse a que alguns quisessem exercer partidarismos: uns dizem que são de Pedro, outros, de Apolo, outros de Paulo... 1 Coríntios 1.12).
b)      Frutos partilhados: O próprio Paulo partilha da sua liderança com Apolo, reconhecendo sua importante participação no processo de consolidação da igreja, ao afirmar que havia plantado a Igreja, mas quem a havia regado era Apolo, apesar de o crescimento ser de Deus (1Co 3.5-8).
c)       Envio: Não sabemos quanto tempo se passou entre o primeiro encontro entre os três irmãos em Cristo e seu processo de discipulado até o envio de Apolo por parte da Igreja em Éfeso. Mas o fato é que, quando Apolo foi para Acaia, ele foi com uma carta de recomendação, sinal evidente do reconhecimento de seu chamado e seu comissionamento por parte da comunidade em face dos frutos apresentados (At 18.27).

Conclusão
Priscila e Áquila nos demonstram a importância do mentoreamento para a consolidação dos novos convertidos e daqueles que, demonstrando algum dom, necessitam de apurá-lo, tendo mais segurança para avançar nos caminhos da missão. Este é o exemplo de um casal amoroso que acolheu um jovem e lhe proporcionou as condições para se tornar um líder de excelência.

O povo do coração aquecido

“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38) Uma experiência de mais de um dia John Wesley era um jov...