quarta-feira, 29 de abril de 2015

Uma igreja digna do seu nome (Atos 11.19-26)

Certa vez, Alexandre, o Grande, conquistador da Grécia, julgou um jovem que havia abandonado o campo de batalha. Era um soldado novo, coitado, inexperiente... mas a acusação era grave. Então, o conquistador perguntou: Como é o seu nome, garoto? E o jovem respondeu: Alexandre, senhor! Então Alexandre ergueu-se e exclamou com o dedo em riste: “Então, mude seu proceder ou mude de nome!”. Um covarde não poderia ser chamado pelo mesmo nome do conquistador.
O texto bíblico acima diz que, até então, os cristãos eram conhecidos como os “do Caminho”. Talvez em referência à frase de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Mas agora, em Antioquia, há uma relação direta entre os seguidores e o mestre. Eles são chamados de cristãos... Eles faziam algumas coisas que os identificavam com Jesus. Que lições podemos aprender com Antioquia?
Primeiro: Era uma igreja que não fazia julgamentos antecipados, mas acolhia as pessoas. Isso acontecia por uma série de eventos contidos nos capítulos 8 a 13 de Atos. Foram perseguidos e dispersos; na fuga, anunciavam a mensagem de Cristo também aos gregos (contra a orientação da igreja de Jerusalém; cf. At 11.19-22). Mas quando Paulo se converte, Barnabé o procura e inicia seu ministério em Antioquia, como parte da comunidade (At 11.25-26). Quantos talentos são desperdiçados por causa de julgamentos e “pré-conceitos”! Uma igreja digna do seu nome é aquela que, como Cristo, abre os braços a todos, impulsionando as pessoas para a vida e para a salvação.
Segundo: É uma igreja rica nos ministérios e que põe as mãos à obra (Atos 13.1-2). Havia ali profetas e mestres de vários jeitos diferentes: Simeão, chamado Níger (que significa negro; portanto, era estrangeiro); Lúcio de Cirene (de outra cidade); Manaém, que trabalhava para Herodes. Pessoas que tinham muitos afazeres; eram ocupadas, mas estavam dispostas a investir na missão. A Igreja digna do seu nome é aquela que diz: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também.”
Terceiro: É uma igreja unida, mesmo diante de pensamentos divergentes. Barnabé e Paulo estiveram juntos por muitos anos, mas houve um dia em que se desentenderam. Barnabé queria levar João Marcos, que havia desistido antes (At 13.13). Paulo não queria arriscar. Eles discutiram e decidiram pôr um fim à parceria (At 15.36-41). Mesmo assim os irmãos abençoaram a missão que ambos empreenderiam. Barnabé ficou com Marcos. Diz a tradição que este jovem escreveu o Evangelho que leva o seu nome. Barnabé acreditou e investiu nele, como fez com Paulo. A Igreja de Antioquia nunca deixou de apoiá-los, embora pensassem diferentemente. E, dali a um tempo, foi possível a reconciliação (cf. a tradição expressa em 2Tm 4.11). Paulo faz recomendações a respeito de Barnabé aos Colossenses (4.10); enfim, há um respeito ao ministério que é feito com temor e amor. Além disso, a Igreja de Antioquia, apesar de ser composta por gentios, sempre teve grande respeito e submissão à Igreja de Jerusalém, consultando sempre os apóstolos ali reunidos em questões de doutrina e prática.

Jesus nos desafia a ser uma igreja digna do nome “Cristã”. Desafiada assim, Antioquia respondeu favoravelmente. Seu testemunho se espalhou por toda a parte. Foi ali que os cristãos receberam o nome que até hoje carregamos. Cumpre a nós sermos fiéis a esse nome. Se não, resta-nos a dura palavra de Alexandre: “Ou muda teu comportamento; ou muda de nome”.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Pentecostes: restabelecendo a comunicação

Entre os teólogos, há certo consenso de que Atos 2.1-11 marca o início da era cristã, pois se trata da sinalização do Reino de Deus pelo testemunho da Igreja. A partir desse evento, Deus atinge toda a humanidade, restabelecendo, assim, a comunicação que desejara ter com o ser humano, desde a criação. Por meio do Pentecostes, a raça humana é convidada a se tornar novamente parceira de Deus nesse anúncio, levando o Evangelho de Cristo a todos os confins da terra.
Atos 2 nos faz lembrar Gênesis 11.1-9. De fato, são textos em paralelo. Suas mensagens são opostas, mas partilham contextos semelhantes. Em Gênesis, se narra que em toda a terra se falava apenas uma língua (11.1). Motivados pela fala comum, os povos se reúnem para construir uma torre, a fim de celebrizar seu nome e gerar fama (v.4), para dominar sobre outros povos. Têm na torre, “cujo topo chegasse ao céu”, a chave de seu poder. A intervenção de Deus acontece “para que um não entendesse o outro” (v.7). Para eles, a comunicação era a chave do poder. Sem ela, se espalham por toda a terra; perdem sua unidade.
O evento do Pentecostes pretende restabelecer a comunicação de Deus com todos os povos da terra. À dispersão de Gênesis se opõe agora a agregação dos povos em torno das maravilhas de Deus, entendidas em cada idioma. A redenção em Jesus Cristo é comunicada a todo o mundo, destaca Pedro (Atos 2.22-24, 36). A comunhão promovida pelo Espírito Santo pode restaurar a comunicação entre os seres. Todos se rendem à boa notícia das grandezas de Deus (Atos 4.32-33; 1 Coríntios 12.25).
E ainda: o Espírito se manifesta, em Atos 2, como “línguas de fogo”. O fogo, em toda a Bíblia, está muito ligado às aparições e visões de Deus (por exemplo, a sarça ardente em Êx 3.2-3). Por outro lado, a língua é instrumento de comunicação humana por excelência. O fato de aparecerem línguas como de fogo sobre os discípulos ressalta que o dom do Espírito excede a edificação pessoal.

Resta a nós, a exemplo da comunidade primitiva, sermos obedientes à sua Palavra. Assim, se cumprirá em nós, dia-a-dia, a promessa do Espirito Santo, a fim de que sejamos testemunhas das suas grandezas onde quer estejamos. Pelo Espírito, tornamo-nos porta-vozes da sua Palavra, veículos de comunicação de Deus a quem Ele nos enviar.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Uma coisa só

38 E aconteceu que, indo eles de caminho, entrou Jesus numa aldeia; e certa mulher, por nome Marta, o recebeu em sua casa; 39 E tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, assentando-se também aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. 40 Marta, porém, andava distraída em muitos serviços; e, aproximando-se, disse: Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só? Dize-lhe que me ajude. 41 E respondendo Jesus, disse-lhe: Marta, Marta, estás ansiosa e afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; 42 E Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada. (Lucas 10.38-42)

Certa mulher recebeu Jesus em casa.
- Aceitamos a Jesus como salvador. Convidamo-nos a entrar em nossa vida. O que nos motiva a acolher alguém em nossa casa? O prazer da companhia, a alegria da amizade. Ninguém que é autenticamente hospitaleiro recebe outra pessoa por interesse, ou porque vai lucrar alguma coisa. Receber a Jesus não pode ser gesto de quem tem interesse mercantilista. Precisa ser ato de graça, de resposta ao fato de Jesus ter vindo ao nosso encontro, porque ele “vem à nossa aldeia” – Cristo se encarnou por nós, veio à nossa vizinhança porque se importa conosco, quer nos anunciar sua mensagem.

Maria, a irmã, estava quieta aos pés de Jesus
Se alguém nos visita, a pessoa que visita é o foco de nossa atenção, acolhida e interesse. Se a deixamos de lado, ela não fica confortável, nem à vontade. As pessoas, quando falam de lugares onde estiveram, não costumam relatar os defeitos se a acolhida foi eficiente. Elas tendem a minimizar os problemas estruturais, os quartos nem sempre arrumados, as camas nem sempre do jeito que esperavam, se o tratamento, o interesse e o cuidado do hospedeiro forem genuínos. Elas podem perdoar faltas no processo se o atendimento for bom. Jesus não está preocupado com nossa eficiência no serviço a Ele, mas se estamos atentos para o que Ele quer nos dizer, mostrar, ensinar e ao que Ele é. A partir da escuta atenta dele, tudo o mais será eficiente. Por isso é que “uma coisa só é necessária”; ou “muito pouco é exigido”.

Marta estava distraída com muitas coisas
Não deixe os dons do Espírito distraírem você. Não deixe os programas da igreja distraírem você. Não deixe os pregadores famosos distraírem você. Não deixe os ministérios, os títulos, as posições distraírem você. Porque se você estiver distraído, vai perder de vista o mais importante. É como diz aquela historieta: Uma mulher muito pobre andava com seu filhinho num bosque à procura de alguém que lhes desse algo para comer quando ouviu uma voz baixinha que vinha de dentro de uma caverna. Ela foi se aproximando cada vez mais para tentar ouvir o que aquela voz dizia. Ao aproximar-se, ouviu: – Olá! Aqui dentro há muito ouro, muita prata e pedras preciosas das mais belas e caras do mundo! Entre agora e pegue o que quiser. Só não se esqueça do mais importante. A mulher, meio desconfiada, olhou para o filho e começou a entrar na caverna. Olhou no interior da caverna e constatou que, de fato, ela estava recheada de tesouros insondáveis que ela nunca tinha visto na vida.
– Posso mesmo pegar o que quiser? Perguntou ela para a misteriosa voz.
– Sim, mas, você poderá encher apenas uma sacola e terá apenas dois minutos para escolher o que quer levar. Depois deste tempo, saia correndo, pois a caverna se fechará para sempre com tudo que ainda estiver aqui dentro. E não se esqueça do mais importante.
Com o coração acelerado pelo pouco tempo que tinha, por toda pressa e com tantas opções à sua frente, a mulher escolhia, juntava, trocava, destrocava, ajeitava os objetos na sacola, trocava novamente. Procurava a todo custo escolher as coisas mais valiosas e que pudessem lhe render mais valores.
– Vamos!! Agora você tem apenas 10 segundos… apressava a voz. Pegou mais uma bandeja de ouro e saiu correndo. Já do lado de fora, ainda teve tempo de assistir a entrada da caverna se transformando num imenso paredão de rocha.
Olhou a sacola, avaliou o que havia conseguido juntar e, feliz, concluiu que agora era uma mulher rica e iria poder dar ao seu filho uma vida melhor. Nunca mais passariam fome na vida. Teria casa, carro, comida… uma vida melhor! Mas em questão de segundos a mulher notou algo… seu semblante imediatamente passou da alegria extrema para a tristeza extrema!
– Meu Deus… meu filho! Meu filho, meu Deus, meu filho…
Na correria, diante da fascinação, esqueceu seu filho dentro da caverna para sempre! 
Uma coisa só significa saber priorizar. Se a gente não fizer isso, vamos perder a chance para sempre.

Uma coisa só
Maria estava atenta a uma coisa só. Jesus. O cego em João 9 sabia uma coisa só: era cego antes, agora via. João Wesley dizia ser o homem de um livro só. Uma coisa só bem feita vale muito mais do que muitas coisas feitas com distração. Martinho Lutero sabia disso quando disse: “Fiz uma aliança com Deus: que Ele não me mande visões, nem sonhos, nem mesmo anjos. Estou satisfeito com o dom das Escrituras Sagradas, que me dão instrução abundante e tudo o que preciso conhecer tanto para esta vida quanto para o que há de vir.”

Muitas coisas geram lamentação, cansaço e divisão no corpo de Cristo
Marta estava brigando com Jesus, reclamando da irmã, apavorada e esbaforida. Eu a entendo completamente. Quando estamos trabalhando muito e vemos alguém parado, nossa primeira reação não é dizer: Vou ficar à toa também. Mas é dizer: Por que ele não me ajuda? Queremos que todas as pessoas tenham a experiência que temos, porque a consideramos melhor. Queremos que todos sejam responsáveis, certinhos e bons como nós somos. Mas Jesus não está interessado em quão espiritual você é. Ele quer saber é se você é capaz de parar para ouvi-lo ou se ainda vai ficar com “muitas coisas”. Posso imaginá-lo balançando a cabeça, fazendo tsic-tsic com a boca. Marta, Marta! Acorda, minha filha... Você está tão preocupada com as coisas de Deus que esquece do próprio Deus!

Uma coisa só – a simplicidade tem seu lugar.
O moço de João 9 não precisava dar muitas explicações porque o milagre era real e concreto em sua vida. Maria não precisava de muitas coisas para agradar a Jesus porque o mais importante ele já tinha -  a atenção dela. Uma coisa só ao invés de muitas coisas. O essencial ao invés do supérfluo. O prioritário ao invés do urgente. O mais profundo ao invés do raso. O mais valioso ao invés do 1,99. Jesus mesmo ao invés do poder dele. Jesus mesmo ao invés do milagre dele. Jesus mesmo ao invés dos sinais dele. Com uma coisa só é possível transformar tudo. É como na história do vestido azul: Num bairro pobre de uma cidade distante, morava uma garotinha muito bonita. Ela frequentava a escola local. Sua mãe não tinha muito cuidado e a criança quase sempre se apresentava suja. Suas roupas eram muito velhas e maltratadas.
O professor ficou penalizado com a situação da menina: “Como é que uma menina tão bonita, pode vir para a escola tão mal arrumada?”. 
Separou algum dinheiro do seu salário e, embora com dificuldade, resolveu lhe comprar um vestido novo. Ela ficou linda no vestido azul.
Quando a mãe viu a filha naquele lindo vestido azul, sentiu que era lamentável que sua filha, vestindo aquele traje novo, fosse tão suja para a escola. Por isso, passou a lhe dar banho todos os dias, pentear seus cabelos, cortar suas unhas.
Quando acabou a semana, o pai falou: – Mulher, você não acha uma vergonha que nossa filha, sendo tão bonita e bem arrumada, more em um lugar como este, caindo aos pedaços? Que tal você ajeitar a casa? Nas horas vagas, eu vou dar uma pintura nas paredes, consertar a cerca e plantar um jardim. 
Logo mais, a casa se destacava na pequena vila pela beleza das flores que enchiam o jardim, e o cuidado em todos os detalhes. Os vizinhos ficaram envergonhados por morar em barracos feios e resolveram também arrumar as suas casas, plantar flores, usar pintura e criatividade.
Em pouco tempo, o bairro todo estava transformado. Um homem, que acompanhava os esforços e as lutas daquela gente, pensou que eles bem mereciam um auxílio das autoridades. Foi ao prefeito expor suas idéias e saiu de lá com autorização para formar uma comissão para estudar os melhoramentos que seriam necessários ao bairro.
A rua de barro e lama foi substituída por calçada de pedra. Os esgotos a céu aberto foram canalizados e o bairro ganhou ares de cidadania. Vendo aquele bairro tão bonito e tão bem cuidado, quem poderia imaginar que tudo começou com um vestido azul?  Uma coisa só – a coisa certa, vale mais do que muitas coisas que não conduzem ao crescimento.
Tudo é uma questão de escolha

Maria escolheu a melhor parte. Escolheu parar ao invés de agitar. Escolheu ouvir ao invés de falar. Escolheu estar ao invés de aparentar. Escolheu Jesus ao invés de escolher o serviço de Jesus. O que você escolhe? Ouvir Jesus pode levar você a se tornar um mensageiro de boas novas. Discípulos ouvem, escutam o mestre, tomam tempo com ele. Multidões ficam em torno de Jesus esperando que suas necessidades sejam atendidas. Discípulos sentam-se aos pés de Jesus. Seguidores querem títulos, nomes, posições, seguidores. Discípulos param quando o mestre vem. Seguidores querem todos os rituais, palavras, sinais e milagres preparados ao redor do mestre, fazendo do evento um espetáculo. Discípulos atentos não se estressam, pois ouvem do mestre o essencial. Seguidores se cansam, se esgotam ou ficam de estripulia espiritual em estripulia espiritual. Cansam-se e começam a se achar injustiçados e abandonados. Discípulos recebem atenção de Jesus porque dão atenção a Jesus. Seguidores reclamam que não são atendidos porque acham que podem determinar que tipo de atenção Jesus deve dar a eles e aos outros. Discípulos amam. Seguidores exigem. Discípulos escutam. Seguidores falam. Que escolha você faz hoje? Muitas coisas ou uma coisa só?

sábado, 11 de abril de 2015

Reflexões sobre o ministério pastoral (o meu, diga-se!)

O segundo domingo de abril é o dia do pastor e da pastora metodistas. Alguns e algumas de nós receberão homenagens, algum mimo e declarações de amor. Outros e outras estão lidando com conflitos em suas comunidades. Outros e outras tantos, desanimados. Alguns e algumas, aposentados, estarão fora dos holofotes.
Eu me lembro de que quando me formei no pré-teológico, nosso paraninfo foi o professor Clemir de Oliveira. Ele foi SD, pastor e professor em Belo Horizonte no distante ano de 1992 (1993?). Estava num momento de grande atuação no Vale do Aço. Ajudou muitíssimo a minha igreja em Itabira, pelo que o tenho sempre em grata e afável recordação... Ele escreveu um longo poema, no qual afirmava, várias vezes, "vale a pena ser pastor". E o declamou de modo esfuziante no dia de nossa formatura, na Igreja Metodista em Santa Tereza, Belo Horizonte. Não sei se ele ainda tem o tal poema. A frase me marcou.
Outro momento igualmente marcante foi o encontro com um colega, cuja esposa me convidou para pregar na Igreja em que ele pastoreava, à época, na Grande BH. Adentrei a sua sala e ele, sem me conhecer de antes, me disse, à queima-roupa: "Você acha que a igreja vai te valorizar? Ela vai te usar o quanto quiser e depois vai te jogar fora". Naquele dia dos meus distantes 22 anos de idade, eu decidi que jamais deixaria acontecer comigo o que houve com ele. Uma amargura tão grande que não me deixasse sair ou que imobilizasse meu ardente coração pastoral, ainda nascente.
Confesso, porém, que hoje entendo o sentimento do colega. Em parte, eu o tenho experimentado sim, para minha tristeza e autoconhecimento. Luto contra ele diariamente. A instituição sabe ser dura. Os membros sabem ser duros. Os líderes, então... A frase do meu professor inspirado me desafia, agora com um ponto de interrogação: Vale a pena ser pastor?
Quando fiquei em São Paulo para terminar meus estudos no jornalismo, procurei o então bispo Josué Adam Lazier para informar de minha intenção: "Ficarei mais dois anos aqui, para terminar o curso de jornalismo. Mas depois eu quero voltar para minha região. Não fico aqui um dia a mais, sequer".
Eu não sei se ele se lembra, mas eu sim... Ele me perguntou: "E se quando você voltar, não houver lugar para lhe nomear, o que vai fazer?" Ousada e aterrorizada, eu respondi: "Bem, eu sirvo a igreja porque eu amo a igreja, mas eu não preciso dela para viver. Se eu não for nomeada, continuarei servindo a Deus como sempre fiz. Acho que a igreja vai perder uma excelente pastora, porque acredito na minha vocação. Mas eu dei minha vida a Cristo, vou servi-lo como for. O que não fiz foi vender minha alma para a igreja. Eu sirvo por amor, não por obrigação".
Dois anos depois, voltamos, meu esposo e eu, nomeados seguindo a ordem: "Primeiro os presbíteros, depois os pastores, depois os evangelistas, depois os seminaristas do ano e, se sobrar lugar, vocês dois". Minhas comunidades pequenas e sofridas em Anchieta e São Conrado devem ainda hoje concordar que tudo o que fizemos em quatro anos foi mesmo por amor. Ao vir para Cataguases, Itamarati e Miraí, acho que seguimos na mesma toada. Amando. Sofrendo. Alegrando-nos. Repetindo que vale a pena... vale a pena...
Reinventamo-nos. Apesar das críticas pertinentes ao processo do discipulado em nossa igreja, começamos a trabalhar com grupos pequenos porque vimos e ouvimos, dentro de nossa história e fora dela, dentro do texto bíblico e em nossa realidade, a comprovação de que é uma estratégia viável. Em que pesem os problemas eclesiológicos, os desvios, a falta de uma orientação clara, nossos percalços e erros, começos e recomeços, seguimos. E sempre estamos nos perguntando se somos, acima de tudo, cristãos no que fazemos, pois ser metodista não é mais do que isso, conforme ensinou João Wesley. Estamos testando a nós mesmos nesse caminho, estudando, lendo, pesquisando, orando e lendo a Bíblia como sempre e nunca, pedindo a Deus misericórdia a cada passo. Cientes do desafio de ser pastor e pastora em tempos de pós-modernidade. E falo no plural porque minha experiência é conectada à do meu esposo, hoje pastor titular.
Era de praxe e ainda é que no caso de casais pastorais, apenas um dos dois seja remunerado. Praxe com a qual nunca concordei, mas à qual, no processo atual, é difícil escapar. Então fomos alternando, conforme um e outro pudessem conseguir outro emprego. E já fiz de tudo um pouco: assessoria de comunicação na igreja por um bom tempo, viajando quinze horas de ônibus de Vila Velha a São Paulo para fechar o Expositor Cristão; professora universitária; revisora de texto; diagramadora; professora de seminários pequenos de várias denominações diferentes; freelancer em jornal. Nos últimos dois anos, morando em outra cidade na semana e pastoreando em Cataguases aos sábados e domingos. E agora um pouco menos corrido em termos de estrada, uns trezentos quilômetros por semana, para fazer doutorado... mantendo as portas abertas até uma próxima rodada de itinerância. Tempo parcial, é? Salve-se quem puder... 
É dia do pastor e da pastora. Se vale a pena? Claro que vale, ou eu lhe digo que não estaria aqui. Vale porque o que eu disse a princípio, dos pequenos mimos, das declarações singelas de amor, dos testemunhos que a gente escuta na estrada, isso é o que segura a gente de verdade. Isso é o que faz a gente lembrar por que saiu de casa há tanto tempo. Nunca mais natal em família. Nunca mais aniversários dos irmãos e irmãs à roda da mesa. Nunca mais passeios no fim de semana. Ao mesmo tempo, mais um pouco disso tudo, só que com outro tipo de irmão.
Quando parece que tudo fica um pouco mais complicado, especialmente nesses dias em que a gente se despediu de tanta gente que começou este caminho no mesmo tempo que nós e hoje não está mais aqui, quando dá uma pontada funda de tristeza, a pergunta se recobre de validade: Vale a pena? Vale, porque, de alguma forma, acho que quando alguém sai não é porque deixou de valer, talvez apenas passe a valer daquele jeito mais primário, que valia antes da gente ter título, ter nome na carteirinha ou algo que o valha.
Vale porque outros e outras estão entrando e alguém precisa dizer a elas e eles que não adoeçam, que não se esqueçam de quem são agora, quando Deus os chama. Alguém para lhes dizer que nada será fácil, nem tranquilo, que a vida em si é um grande desafio. Que o maior problema não é fazer a igreja crescer, nem entregar a estatística em dia, nem visitar um doente, nem aconselhar um casal em crise. O maior problema será sempre manter-se em integridade, que é a qualidade de não negar sua humanidade, de pedir ajuda assim que tropeçar, de chorar a verdade mais profunda de seu próprio pecado e jamais, jamais ser hipócrita. O problema é sempre preservar um caráter - esse mesmo, inflamado e entusiasmado que a gente tem quando sai de casa para ir ao seminário. O resto se ajeita.
É coisa de encontrar um mentor ou mentora, é coisa de treinamento, coisa de prática, que o tempo traz. Mas caráter, não. Esse a gente tem que trabalhar nele todos os dias, com afinco, para não vender a alma. Nem à instituição, nem a si mesmo, nem a Satanás, mas rendê-la, graciosamente, ao Pastor que pastoreia as almas que se reconhecem doentes, clamam por cura e estendem-se, de igual modo gracioso, em busca de outras almas adoecidas por este mundão de meu Deus.
Vale a pena ser pastor, ser pastora, enquanto de igual modo valer a pena ser gente. Porque de anjos e ungidos, Deus me perdoe, o inferno anda bem cheio (e o mundo, também)!

domingo, 5 de abril de 2015

Ontem

Ontem... hoje... (uma imaginação acerca das mulheres que foram ao túmulo de Jesus)

Ontem, eu vi Jesus Cristo pendurado na cruz. Vi seus olhos cerrados, seu lado ferido, suas mãos e pés transpassados. Vi a esperança morta nos olhos dos Seus discípulos, o desespero nas lágrimas das mulheres, a indiferença no rosto dos poderosos. Por um momento, parece até que vi o próprio inferno em festa na multidão que gritara: Crucifica-O! Crucifica-O!
Ontem, quando olhei para o alto, eu vi o luto do céu. Às três horas da tarde, tudo escureceu porque os anjos não podiam contemplar a tamanha maldade humana. Deus fechou Seus olhos por um momento diante do último suspiro de Seu filho amado. As nuvens se escureceram como se uma grande tempestade fosse desabar em lágrimas da natureza sobre o próprio autor da vida, tomado pela morte. O sol se recusou a dar a sua luz, para que seus raios não se refletissem no suor da testa de Jesus, nem nas gotas de sangue e água que escorriam de seu lado ferido. O vento se recusou a soprar para que o cheiro do sangue derramado ficasse suspenso no ar, nos lembrando de que o salário do pecado é a morte – o salário do nosso pecado, pago por Jesus, o mais perfeito sacrifício que se podia esperar.
Ontem, quando fui ao templo, eu vi o anseio de Deus em romper toda separação. De alto a baixo, o véu do templo se rasgou, pois agora não faz sentido nenhum segredo, nenhum lugar secreto, porque Ele Se fez gente para que todos pudessem ver Seu rosto, olhá-Lo nos olhos e tomar uma decisão definitiva. O Santíssimo Lugar agora, mais do que nunca, deveria ser o coração de cada pessoa. Não havia mais necessidade de peregrinar até Jerusalém, se os pés sagrados de Deus já haviam andado por toda parte da Judéia e até da Samaria, unindo os povos brigados nos laços de amor do mesmo Deus que estava no templo e no poço, em Sião e em Gerizim. Ontem, eu vi o silêncio dos seguidores perdidos... vi a decepção da gente do meu povo tão sofrido, esperando redenção.
Um túmulo novo para um morto sem nobreza. Linho puro para cobrir um corpo sujo, ferido, sangrado. Nem tempo para funerais, para cumprir os costumes, para cuidar e embalsamar. Funeral feito às pressas, que nem funeral de bandido, de marginal, de malfeitor...
Mas tudo foi ontem. Hoje, uma brisa nova passa por cima da terra. O cheiro do sangue se foi. Os espinhos parecem esquecidos, porque vejo brotos e flores por toda parte. Enquanto me aproximo do túmulo, penso nisso. Trago perfume nas mãos e tristeza na alma. E no espanto que sinto, vejo a pedra fora do lugar. Receosa, caio de joelhos, na expectativa, no medo, na esperança, no desapontamento... Será? É a pergunta que me vem à mente... Será que é possível? Olho em meus braços e tudo o que tenho nas mãos de repente se torna inútil... Para que levar perfumes e bálsamos, se não existe mais morte a lamentar? Isso tudo foi ontem e o ontem, graças a Deus, já passou.

O que fazer com a notícia?

Maria Madalena foi ao túmulo de madrugada, escondido, para prestar suas homenagens a Jesus. Medo dos judeus, medo dos  romanos, medo do que os outros poderiam pensar. Medo dos homens, dos discípulos, dos assaltantes da madrugada, dos roubadores de esperança. E vergonha. Sim, inadmissível que amassem tanto o mestre, mas é certo que sentiam vergonha daquela morte humilhante, bandida. Isso tornava até o amor deles repugnante. Como amar alguém assim? Bandido bom é bandido morto. O bandido está morto. Amá-lo é crime. Então o jeito é chorar de madrugada.
Perfumes e panos arrumados para cumprir os rituais. Humanizar o morto, prepará-lo, ainda que de atraso, para o encontro com o Eterno.
As leis religiosas não poderiam mais ser cumpridas, porque o tempo de preparar o morto já havia passado. Assim, na verdade, apesar do medo e da vergonha, no gesto das mulheres há um brilho genuíno da graça de Deus. Fazer o certo mesmo quando não cabe mais. Mostrar afeto ainda que não faça diferença. Cultivar amor, ainda que escondido. E chorar, que ninguém é de ferro.
A saudade de Jesus, celebrada com os discípulos, celebrada anteontem mesmo, agora é concreta, real e fria. Mas, como disse Rubem Alves, "Quem não pode suportar a dor da separação, não está preparado para o amor. Porque o amor é algo que não se tem nunca. É evento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta,a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro."
Saudade é uma presença de ausência, ensina o mestre. Quando o ente querido não está, então a ausência se torna algo real, tangível. Usamos rituais para lidar com ela. Vemos os álbuns de retratos, sentimos cheiros, resgatamos receitas. Vamos ao cemitério de madrugada, quando nosso medo, vergonha e dor podem ser disfarçados com as trevas ao redor. Tememos.
Mas há um problema...

Quem nos removerá a pedra? Como podemos nos aproximar do mestre que está morto, se uma pedra nos separa? O sepulcro é intransponível para o ser humano. Qualquer pessoa que morre em nossa vida está separada de nós por esta pedra sepulcral. Iremos até ela, mas não há recíproca. A não ser que um milagre aconteça. Esse é um milagre doloroso para os discípulos de Jesus. Há uma grande controvérsia em andamento. Os saduceus não aceitam a ressurreição. Os fariseus acreditam, mas no último dia apenas, que ninguém sabe quando será. Os essênios se escondem pelo deserto e não sabemos bem o que eles pensam... Há incrédulos pelas ruas. Há os que desistiram da ideia de Deus. Há os que não acreditam sequer na vida, quanto mais na ressurreição. Há o império. Forças de morte, ideias de morte, práticas de morte. Como crer?


Viram que a pedra já estava removida. Deus sabe que a iniciativa precisa ser dele. Ele cria o mundo. Ele coloca roupas de pele sobre os homens caídos. Ele envia os profetas. Ele manda sonhos e visões. Ele determina libertadores. Ele se encarna em Jesus. E ele remove a pedra. Mais uma vez, o impossível se torna possível. A pedra é a impossibilidade. É o problema. Quando há uma pedra no meio do caminho, é só ela que se vê. A mente humana não encontra alternativa. Só repete: tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra... Mas a fé vê o caminho, não a pedra. A fé luta pelo caminho. Por isso a fé é dom de Deus. Porque ela vê além do que os olhos, que só enxerga a pedra.


Ele não está mais aqui. O jovem vestido de branco contempla o túmulo vazio. Ele é o espanto das mulheres. Um jovem... lembro-me de João: Jovens, eu vos escrevi porque sois fortes e tendes vencido o maligno. Veja, um jovem está no sepulcro. Não nos diz Marcos que é um anjo. É um jovem. Um mistério, uma potência. E ele nos relata que a saudade continua, pois de novo uma ausência. Ele não está aqui. Costumamos procurar por Jesus em nossos lugares costumados. Pode ser que ele não esteja no túmulo. E pode ser que, em algum momento, ele não esteja sequer na igreja. Ele pode estar na rua, pode estar na esquina, no lugar ao lado. É preciso que vençamos o medo de andar escondidos pela noite, porque ele, ressurreto, não ficará escondido ou retido por nossos limites. Onde ele está? Na Galiléia. Para encontrá-lo, é preciso antes uma atitude concreta, de quem quer ir além do medo.


Contai aos discípulos e a Pedro: Uma boa notícia deve ser compartilhada. É do caráter intrinseco da boa nova que ela se espalhe. Seu objetivo é alegrar, consolar, confortar. Guardá-la não faz sentido. Mas temos sido arautos da tragédia. Fofoqueiros, maliciosos e boateiros. Coisas boas não dão Ibope, desde os tempos antigos. A notícia da morte se esperava que fosse divulgada. É um absurdo até que não seja sabida, diz o moço da estrada de Emaús ao estranho que se aproxima: Como é que você não sabe? Mas a notícia boa a gente esconde. Pode ser por medo de que partilhar a felicidade faça com ela seja diminuída. Se quer que uma coisa boa siga boa, não conte a ninguém. Não fale da sua felicidade porque a inveja atrapalha... Egoísmo que mata a essência da notícia boa. As mulheres são desafiadas a superar seu medo e a contar a notícia, porque agora o fato vai além do túmulo.


De medo, nada disseram a ninguém. Dizem os estudiosos que foi assim que terminou a escrita da primeira versão de Marcos. O medo não deixa que a notícia se espalhe. O medo leva a gente de volta pra casa. Saíram do sepulcro correndo, com medo, assombradas. Nem sentiram que o sol já tinha nascido, nem perceberam os novos ventos soprando, nem lembraram as promessas. O medo não deixa a gente ir além do possível, do viável. O medo não permite descobertas.  O medo não deixa espaço para a acolhida, o perdão. Este é o dano. Para que a notícia se espalhe, é preciso que o medo seja vencido, se não, nada feito. 


Mas, há sempre o recomeço... O versículo 9 parece que resolve contar tudo de novo... E de outro jeito... Resumido, que Marcos é de poucas palavras. Veja lá. "Quando Jesus ressuscitou, na madrugada do primeiro dia da semana, apareceu primeiramente a Maria Madalena, de quem havia expulsado sete demônios. Ela foi e contou aos que com ele tinham estado; eles estavam lamentando e chorando." Ela foi e contou. Simples assim. Boa notícia não tem mistério. Não podemos controlar o que vai acontecer depois de contarmos. Não sabemos o que as pessoas irão fazer com essa notícia. Desconhecemos as potencialidades de seu desdobramento. Só sabemos que não dá pra ficar com ela só pra nós. Não deu para as mulheres, não deu para Maria. E é por isso que estamos até hoje aqui, contando a mesma história. Esperando a mesma boa notícia. Acreditando em milagres. Por causa de um povo desprezado que não conseguiu conter a notícia "incontível". Cremos no que ninguém mais poderia crer, por causa delas e deles. Seguimos na trilha dos contadores de boas notícias. Hoje é nossa vez de escolher o que vamos fazer com essa novidade. É nossa opção nos calar por medo, por egoísmo ou por conveniência. É nossa opção contar como quem segue sentindo saudade, contando e contando até chegar o dia em que paremos de sentir saudade. O dia da ressurreição do corpo, do novo abraço, do fim da espera... A notícia que continua relevante, pois tem gente que esqueceu o que ela significa, como lembra Rubem Alves:

"Os cristãos incluíram uma declaração estranha no seu Credo. Diziam que criam e desejavam a ressurreição do corpo. Como se o corpo fosse a única coisa que importasse...
Mas haverá coisa que importe mais?
Haverá coisa mais bela?
Ele é como um jardim, onde crescem flores e frutos...
Cresce o riso,
a generosidade,
a compaixão,
o desejo de lutar,
a esperança;
a vontade de plantar jardins,
de gerar filhos,
de dar as mãos e passear,
de conhecer...
E ele transborda as águas que vão subindo, e elas saem dele, e o deserto seco vira oásis regado. é assim: neste corpo tão pequeno, tão efêmero, vive um universo inteiro, e, se ele pudesse, bem que daria a sua vida pela vida do mundo.
Mas o corpo não é só fonte que transborda: é colo que acolhe.
O ouvido que ouve o lamento, em silêncio, sem nada dizer...
A mão que segura a outra...
O poema, que é a magia que transubstancia o mundo, colocando nele coisas invisíveis, só reveladas pela palavra...
A capacidade de ouvir as lágrimas de alguém, longe, nunca visto, e chorar também...
O meu corpo transborda e fertiliza o mundo...
Tão simples, tão belo. Mas algo estranho aconteceu.
Algo nos tentou, e começamos a buscar Deus em lugares perversos.
Pensamos encontrar Deus onde o corpo termina: e o fizemos sofrer e o transformamos em besta de carga, em cumpridor de ordens, em máquina para o trabalho, em inimigo a ser silenciado, e assim o perseguimos, ao ponto do elogio da morte como caminho para Deus, como se Deus preferisse o cheiro dos sepulcros às delícias do Paraíso.
E ficamos cruéis, violentos, permitimos a exploração e a guerra. Pois se Deus se encontra para além do corpo, então tudo pode ser feito ao corpo.
Escrevi estas coisas como celebrações da ressurreição.
Na esperança da ressurreição dos mortos.
Para exorcizar a morte, que nós mesmos alimentamos com nossa carne.
Invocações de alegria e beleza.
Quem tem alegria e ama a beleza luta melhor.
Os corpos ressuscitados são guerreiros mais belos porque trazem nas suas mãos as cores do arco-íris.
E os corpos se transformam então em semente que engravida a terra para que nasça o futuro... (Rubem Alves)
Agora estamos como Maria e os apóstolos. Já sabemos que o túmulo está vazio. Estamos alegres pela ressurreição, mas ainda cheios de saudade. Volta, Jesus!

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Ainda é sexta-feira

A agonia do Calvário começou ontem, quando, reunido com seus discípulos, o Mestre amado comeu e bebeu sua última refeição. Quando ele orou sozinho, pedindo forças para beber a amargura da morte, enquanto seus companheiros dormiam... Bem disse o evangelista que foi de tristeza, mas muita gente sabe que a causa de sua insônia é o peso da dor que carrega no coração... Eles dormiram, sim, mas acho que foi mesmo de incompreensão, de indiferença até, de achar que nada daquilo seria realmente possível...
Mas, agora, é inegável... Hoje é sexta-feira e o mal está feito. O beijo roubado da traição já foi dado. E todos ouviram quando o galo cantou. O que pouca gente viu foi o choro da vergonha, do arrependimento, da convicção da verdade quando bate fundo na alma de um discípulo duro e turrão... Menos gente ainda viu o mal irremediável do remorso, a corda tensa da culpa, da ignorância tão extrema do amor perdoador do Pai, que não o nega a ninguém...
Sim, hoje é sexta-feira. Era madrugada quando começaram os açoites e zombarias. O dia chegou, mas com ele nenhum alívio para o preso inocente. As horas se aproximam, agoniantes, proclamando o Calvário que virá. Nenhum pedido especial pela última refeição, nenhuma visita dos parentes, nenhum ministro religioso para ouvir a confissão e o possível arrependimento do condenado. Somente ele, os soldados, a tortura e a cruz.
De fato, hoje é sexta-feira. Começa a caminhada, a via dolorosa, uma tortura a mais, não imposta aos demais, mas que ele sofreu na pele já exposta, cortada, ferida, ardente e sedenta. Ele carrega a cruz e, nela, o peso do pecado de toda a gente. Só hoje, em 2007, são sete bilhões de almas a serem remidas... Imagine quantas foram ao longo de toda a história. Só de pensar nisso já vejo um milagre: só o filho de Deus poderia mesmo carregar tamanho peso e alcançar o Gólgota ainda vivo. Só o peso do meu pecado me faz cair tantas vezes ao longo de uma vida tão pequena... não consigo imaginar o que é o pecado de uma eternidade de anos desde o sexto dia da criação...
Coincidência ou não, no sexto dia da semana, na sexta-feira, começou a subida para o alto de um monte, em busca de um novo homem, uma nova mulher, que estes que hoje aí estão trazem a marca desfigurada da imagem de Deus. E a restauração passa pela dor de uma morte tão cruel. Quem poderia imaginar esse tal horror?
Sim, mas é sexta-feira. Três horas da tarde, enfim, depois de uma eternidade ali, de dor, cansaço, febre, sede, calor, alucinações e hipotermia. E o meio da tarde vira noite. Até o inimigo romano admite, na boca do centurião: “Esse aí era mesmo um filho de Deus”. O véu do templo se rasga. Ele brada: “Está consumado”. Seus olhos, decerto já anuviados, vêem pela última vez num momento as mulheres que choram a seus pés. Seu coração sente saudade dos discípulos covardes que fogem. E não fugiria também eu?
Sexta-feira e eu estou perdida no meio da multidão que volta para casa depois do espetáculo. Trago no coração o luto de quem perdeu alguém querido. A revolta de alguém traído pela justiça, pela política, pela religião. Trago as marcas de quem foi moído pela mentira, de quem foi oprimido porque não tinha nem um tostão furado. Trago a dor de quem foi impedido de entrar porque não tinha a roupa adequada. Sentimentos de sexta-feira. Dor de cruz.
A sexta-feira é o túmulo do ente amado que se foi. A sexta-feira é a bala perdida que leva um inocente sem explicação. A sexta-feira é uma criança morta por bandidos no meio da cidade, sem que haja proteção. A sexta-feira são crianças iludidas com a promessa de uma vida melhor e feitas escravas num mundo onde supostamente não havia escravos... A sexta-feira é a fome no mundo, as guerras, a corrida armamentista, as armas de destruição em massa, o terrorismo em nome de Deus. São as doenças de gente: a aids, o câncer, a dengue, a meningite. E, por que não?, as doenças de bicho: a gripe aviária, a febre aftosa, a raiva... São todas as coisas que fazem a criação de Deus chorar e gemer. Porque sexta-feira é morte, é paixão, é dor, é angústia. É o sentimento de impotência que nos invade diante da tragédia, da perda, da doença, do inexplicável... É a noite às três horas da tarde. É a crise de fé: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” É o medo da fragilidade humana diante de um diagnóstico. É a dor da fragilidade humana quando o corpo se quebra. É o silêncio que resta quando a voz, finalmente, se cala. Sexta-feira é o nó na garganta, é o fim da picada, é o fim da linha...
Talvez, por tudo isso, afinal, quase não se fala, de verdade, na sexta-feira. Tentamos negar sua existência. Falamos com alegria do final de semana, sem pensar, de verdade verdadeira, na sexta-feira. Mas ela vem ao nosso encontro e não dá pra enganar. Dizemos odiar a segunda, mas a rotina que ela proporciona na verdade nos alivia. Difícil é encarar o fim dos processos. Doído é viver, de verdade, a sexta-feira. Mas é nela que nos movemos a maioria dos nossos dias. É nela que reside o mais fundo efeito do pecado humano. Por causa da sexta-feira é que vemos nos noticiários mais eventos ruins do que bons. Por causa da sexta-feira, por causa da morte e do pecado que levou a ela, de repente estamos nós, seres humanos, ameaçados de extinção pelo aquecimento global...
E talvez, por tudo isso, afinal, muita gente tenha perdido a esperança. Muita gente tenha entregado os pontos. Muita gente descrê. Vai para casa como os apóstolos naquela distante sexta-feira, depois de enterrar apressadamente seu morto, com medo do que possa acontecer. Sem poder sequer chorar em público, sem oportunidade de lamentar. Sem levantar os olhos da lápide, sem lembrar a promessa. Às vezes, ao contrário, zombando dela e de sua aparente impossibilidade. Ninguém jamais voltou de lá... por que seria diferente agora?
Estamos vivendo a sexta-feira. Em todo o mundo, é sexta-feira e sempre será, enquanto a morte existir e todas as suas forças reinarem nas vidas humanas perdidas, sem esperança. Mas o problema dos cristãos é exatamente esse: crer contra a própria esperança... Porque nós sabemos o que os apóstolos, naquela distante sexta-feira, podiam apenas desejar; ou que ainda não estavam preparados para crer...
Apesar de hoje ser sexta-feira, como o apóstolo Paulo disse, eu creio também que “as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que há de ser revelada em nós”. Apesar de hoje ser sexta-feira, “a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus”. E, embora seja sexta-feira e a “criação esteja sujeita à vaidade, mesmo contra sua vontade”, e muito embora ela “conjuntamente, gema e esteja com dores de parto, e não só ela, mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gemamos em nós mesmos”, nós cremos e vivemos na “esperança de que a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus”.
Apesar de hoje ser sexta-feira, tenho fé e esperança, porque “na esperança somos salvos”. E quando eu quero duvidar, por causa do amargor das minhas sextas-feiras, me lembro da exortação de que “a esperança que se vê não é esperança; pois se alguém vê, como o espera?”. Então eu lamento, e choro e sofro, porque não posso esconder de Deus minha dor. Mas me refaço, e luto, e não me acomodo, porque “se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos”. E quando o peso da sexta-feira parece demais para mim, eu sinto que “o Espírito nos ajuda na fraqueza, porque não sabemos orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós, sobremaneira, com gemidos inexprimíveis”.
Por isso, prossigo, ainda que seja sexta-feira. Meus olhos enxergam a morte, mas meu coração espera com paciência pela vida. Meu corpo experimenta a dor, mas meu coração, surpreendentemente, canta de júbilo. Minha boca se cala, mas minha alma clama. Por ser sexta-feira, meus limites me param, mas minha fé me leva além. E porque assim espero, também fico bem certa, de “que nem a morte, nem a vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem do futuro, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”.
Sim, é sexta-feira, e a morte exala seu odor por toda parte. Lamentadores estão pelas praças e são muitos os que predizem tempos de desgraças. Mas eu creio. Lembro-me do servo de Deus do passado, que disse: “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide, o produto da oliveira minta. E ainda que não haja mantimento nos campos e nos currais não há gado... Todavia, eu me alegrarei no Senhor e exultarei no Deus da minha salvação. Javé é a minha força, firmará os meus pés como a corça. Ele me fará andar altaneiramente...”
Sim, é sexta-feira. Mas todo o cristão sabe, e crê, e espera, e suporta. Porque ele sabe que depois de toda sexta-feira da paixão há um tempo de espera confiante. Talvez demore um pouco, talvez o sábado se alongue. Mas não é sem fim. Depois de toda sexta-feira da paixão, há sempre uma manhã de domingo. E depois de todo o choro, alguém de branco virá e dirá: “Por que procuras entre os mortos aquele que vive? Ele não está aqui, mas ressuscitou...” Sim, ainda é sexta-feira. Enquanto eu estiver neste mundo tão cheio de dores, viverei esta sexta-feira. Mas “eu sei que o meu redentor vive e que por fim se levantará sobre a terra. E depois de consumida esta minha pele, então na minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei ao meu lado, os meus olhos o contemplarão.”
Sim, hoje é sexta-feira. E o meu caminho é o de consolar os que vivem a dor desta sexta-feira. É caminhar ao lado dos que aguardam o domingo da ressurreição. Tenho diante dos olhos, dentro do coração, a memória de todos os que me esperam lá. E nos veremos de novo, daremos braços e abraços, vamos rir e chorar de emoção. Esvaziaremos os odres da saudade, nos despiremos de nossa mortalidade para nos cobrir com as vestes reais da eternidade. Todos os motivos para chorar serão queimados nas brasas vivas do altar de Deus. Todas as lágrimas serão extintas. Todos os crimes e erros serão de uma vez por todas superados, julgados e esquecidos. Vou recuperar o que perdi e sei que jamais perderei novamente. Essa certeza me fortalece para esperar.

Sim, hoje é sexta-feira, Senhor, mas não para sempre. Estou aqui, do lado de fora deste túmulo, e esperarei. A hora certa há de chegar. Estarei pronta e meu coração já antecipa a euforia, ainda que eu chore. É sexta-feira, Senhor... Eu preciso te encontrar, para viver contigo, como diz uma canção popular, “como um dia de domingo”. Vem, Senhor, transforma esta sexta-feira em domingo de ressurreição!

O povo do coração aquecido

“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38) Uma experiência de mais de um dia John Wesley era um jov...