Uma brincadeira de criança
Quando pequena, eu gostava da brincadeira de despetalar flores enquanto falava: “Bem-me-quer, mal-me-quer...”. A brincadeira tinha a ver, não raro, o desejo de adivinhar se o rapazinho que a gente achava “gatinho” gostava ou não de nós. O problema dessa adivinha infantil era a inconstância do processo. Dependente do número das pétalas da flor, o amor nunca era seguro... e persistia a dúvida. Essa brincadeira parece ser uma parábola da relação do povo com Deus, conforme expressa no salmo 106. E se assemelha, em muito, à vida de muita gente hoje, em nossos arraiais cristãos. Gente que conhece ao Senhor, mas precisa firmar-se. Dependentes das circunstâncias, às vezes elas se pegam dizendo, com suas atitudes: “Tenho fé, não tenho fé... Tenho fé, não tenho fé...”
Bondade e fidelidade: atributos divinos (v.1)
O salmo começa celebrando a Deus por sua bondade e fidelidade. Esta segunda qualidade de Deus é sempre exaltada na Bíblia, particularmente porque contrasta profundamente com a realidade humana, volúvel, impossível de se confiar. Estou lendo novamente o livro “O Monge e o Executivo” e os conceitos daquele autor, tão simples e já vistos por aí afora, me deslumbram. Um deles é o de compromisso: ater-se às escolhas feitas.
Para mim, esta definição contempla o que a fidelidade de Deus significa: Ele nos escolheu e continua nos amando, apesar de nós, de nossos revezes, de nossa ignorância, pecados ou desmazelo. Ele continua a ser fiel porque não olha as circunstâncias, mas a escolha que fez. Vamos ver como isso ocorre nos Salmos 106-107. Permitam-me para isso usar a TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia), feita em colaboração por excelentes pesquisadores bíblicos de diversas denominações cristãs de várias partes do mundo (e também de judeus, o que dá um toque especial, a meu ver...). Abro um parêntese para dizer que gosto muito dela porque é extremamente poética e preserva certa musicalidade nos Salmos, bem como a Bíblia NVI (Nova Versão Internacional). Variar as versões é bom, não é? Além de enriquecer o vocabulário, ainda nos dá outros pontos de vista para explorar em nosso relacionamento com o livro sagrado. Tenho um amigo que diz: Bíblia nunca é demais...
Mas, voltando ao que interessa! O Salmo 106 está tematicamente ligado ao 107. Verifique, no Salmo 106.44-46, como o salmista explicita a fidelidade divina: “Olhou para a angústia deles quando ouviu seu grito. Recordou-se de sua aliança com eles e na sua grande fidelidade voltou atrás. Fez com que deles tivessem pena os que os haviam deportado” (TEB). A fidelidade de Deus faz com que Ele interfira de modo salvífico em nossa realidade, apesar de sermos nós, como Israel, que o tenhamos abandonado. Ele volta atrás porque sua fidelidade fala mais alto. Quantos exemplos bíblicos desta realidade você é capaz de citar?
E aliada à fidelidade, está a bondade divina. A fidelidade anda de mãos dadas com a bondade no coração de Deus. A bondade é a prática de atos bons, como resultado do amor. E Seu amor é o fundamento de Sua fidelidade. E aí novamente entra o conceito bíblico de amor: uma decisão que é tomada, não um sentimento a ser experimentado. E uma vez tomada, a decisão de amar é sustentada pelo compromisso de ater-se à escolha feita. Isso gera capacidade de fazer-se confiável. Se uma pessoa se mantém fiel aos seus princípios, a consequência disso é se torna possível às outras depender dela, confiar nela, recorrer a ela quando necessário. Porque sua natureza é confiável... No Salmo 106.43, a fidelidade de Deus é reforçada – “Muitas vezes os libertou” – em oposição direta à inconstância do povo: “mas eles se obstinavam na sua revolta e afundavam na sua falta” (TEB) ou “eles foram rebeldes nos seus desígnios e foram abatidos pela sua iniquidade” (TCB). Obstinação e rebeldia humanas opõem-se frontalmente à fidelidade divina. Mas esta não se abate.
Inconstância: ausência de conversão
No salmo 107, o salmista faz um diagnóstico da situação do povo sem Deus: alguns extraviaram-se em solidões e estavam sedentos e famintos (v.4-8); outros habitavam nas trevas e na sombra da morte, prisioneiros da miséria e dos ferros, revoltosos contra Deus (v.10-12). Alguns, embrutecidos pelos seus desregramentos, aviltados pelos seus pecados, enfastiados de qualquer alimento, tocavam as portas da morte (v.17-18). Outros ainda estavam sobre as águas, subindo aos céus e descendo aos abismos, morrendo de enjoo, rolando como bêbados e sem habilidade para livrar-se (v.25-27). Bem, resumindo: a situação era feia!
Contudo, cada bloquinho de texto desses é seguido por outro que inicia com a afirmação: “Bradaram ao Senhor na sua aflição e ele os salvou de suas angústias” e segue contendo o livramento específico que cada grupo recebeu, de acordo com sua aflição distinta. Veja em sua Bíblia (v.6-7; 13-14; 19-20; 28-29).
Este destaque é de suma importância, tanto para nos mostrar que o amor de Deus é grande quanto para nos demonstrar que Deus não nos trata de modo homogeneizante. Ele está atento às especificidades de nossa aflição e quer interferir diretamente em nossa história. Contudo, a conversão verdadeira, a mudança de vida requerida nos convidará a nos assemelharmos mais ao Senhor, rompendo o círculo da inconstância para iniciar um caminho de crescimento contínuo com Ele. Estamos dispostos e dispostas a isso?
O salmista segue, demonstrando que o clamor do povo evidencia a fidelidade de Deus. Veja em sua Bíblia que aparece um terceiro bloquinho de versículos, compondo a harmonia deste poema. São versículos que nos convidam a celebrar a Deus por sua fidelidade no salvamento de cada parte de seu povo sofrido (v.8-9; 15-16; 21-22; 31-32). Na TEB, o início de cada bloco aparece assim: “Que celebrem ao Senhor por sua fidelidade e pelos seus milagres em favor dos humanos”. A fidelidade divina, frente à inconstância humana, é para ser reconhecida e celebrada. Ressalte-se que nos versículos finais (v.33-41) do salmo 107, o salmista inclui a natureza no projeto salvífico de Deus!
Mudança de vida: uma decisão de sabedoria
O povo é obstinado, rebelde, desregrado, oprimido pelos adversários, pecador. Apesar de ter experimentado a ação salvadora de Deus em muitos momentos de sua história, persevera nos seus erros, volta atrás, vacila, desiste. Falta-lhe o genuíno compromisso que vem da verdadeira conversão. Não consegue se ater à escolha, feita uma vez, de servir ao Senhor.
Que experiência isso traz para nossa vida hoje? Como esta palavra fala ao seu coração sobre seus caminhos com Deus? Eu penso que aqui temos que examinar detidamente a trajetória de nossas próprias vidas. Reconhecer nossa inconstância, como resultado de nosso pecado, prevaricação contra a vontade divina, desobediência ao discipulado radical de Cristo. Temos de nos comprometer com Deus, em Cristo, assim como Ele, em Cristo, se comprometeu conosco. Temos de nos ater às escolhas feitas e decidir amar ao Senhor e às pessoas. O salmista nos orienta de modo decisivo: “Quem quer ser sábio? Que preste atenção a tudo isso e que aprenda a discernir as bondades do Senhor!” (v.43).
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