terça-feira, 20 de maio de 2008

Falar e cantar as coisas de Deus (Salmo 40)

O Salmo 40 é um dos mais conhecidos e cantados salmos de nosso repertório judaico-cristão. Diversos grupos já musicaram suas palavras e muita gente gosta de recitá-lo quando passa por uma situação difícil. Ao receber a proposta da Revista para escrever a respeito da fala, imediatamente me lembrei deste texto, pela quantidade de vezes em que o salmista se refere à fala – mas de modo bem específico a fala a respeito de Deus e de suas maravilhas.
Um hino antigo dizia, em sua letra: “Falamos do mau tempo, do frio e do calor. Oh, bem melhor seria, falar do salvador! Irmãos, irmãos falemos do nosso salvador. Oremos ou cantemos, rendendo-lhe louvor”. De fato, nossa fala gira em torno de muitas coisas, a maioria delas dizendo respeito a nós mesmos. Mas o salmista proclama o que Deus fez em sua vida e desloca o eixo de seu discurso de si mesmo para o Senhor, libertador e restaurador.
Este salmo possui algumas peculiaridades redacionais que fazem com que alguns estudiosos vejam nele uma espécie de colcha de retalhos de temas sálmicos, como a oração de ação de graças (versículos 2-12) e a oração individual por socorro, retomada no salmo 70 (v.13-18). Muitos salmos, de fato, retomam e repetem expressões uns dos outros, mostrando formas mais ou menos fixas de orações, bem como atualizando preces de uso coletivo, adaptando uma ou outra condição da oração à particularidade de quem orava naquele momento. Isso nos mostra a riqueza do falar israelita que sempre faz com que a oração não seja produto de um indivíduo, numa formatação personalista ou egoísta. Mesmo quando o problema é particular e a prece é pronunciada na intimidade, ainda assim a fé fala do povo, do coletivo, dando a idéia de uma família que ora, que transmite e recebe as experiências com Deus. Isso é uma grande riqueza, especialmente nos tempos modernos, quando mais e mais se quer individualizar a fé e o próprio Deus na experiência religiosa que desaprende o valor da comunidade!

Um cântico que faz crer
De dentro de uma situação caótica, ilustrada pela imagem do “poço de perdição”, um “tremedal de lama” (edição revista e atualizada de João Ferreira de Almeida); um “precipício tumultuoso”, um “lamaçal do atoleiro” (TEB) e ainda “poço de destruição”, “atoleiro de lama” (NVI), o salmista clama por socorro. Sua situação não lhe permite sair sozinho, pois se sente sem chão como em lama ou areia movediça e, além disso, está no fundo do poço. Quando o livramento lhe vem da parte de Deus, ele é descrito com três expressões da ação divina: “inclinou”, “ouviu” e “tirou” (v.1-2). Aqui, o salmista retoma a idéia geral presente no mundo do Antigo Testamento, de que Deus reside nas alturas e é do alto que vem a salvação e o socorro divinos: “Quem é semelhante ao Senhor nosso Deus, que tem o seu assento nas alturas, que se inclina para ver o que está no céu e na terra?” (Salmo 113.5-6).
É por isso que o livramento de Deus é caracterizado pela “elevação”, isto é, Deus faz o salmista “subir de nível”: os pés são colocados sobre a rocha, os passos são firmados (v.2). O “grito de socorro” se transforma em “novo cântico, um hino de louvor” (v.3).
Como resultado do livramento e do cântico, um processo de testemunho e de salvação se desencadeia entre aqueles que ouvem o relato destes acontecimentos (v.3). Novamente aqui se expressa a característica coletiva da fé em Israel, quando a salvação de um indivíduo repercute na geração de temor e de conversão nos demais! Além disso, reforça a idéia do valor e da importância do testemunho, que é um tema que o salmista passa a desenvolver até o final de seu texto, como veremos.

Antes de falar de Deus
Como dissemos no início deste texto, existem muitas falas em nossa vida e, se pararmos bem para observar, a maioria delas gira em torno de nós mesmos. Essa fala egoísta impede que proclamemos as grandezas de Deus, pois optamos por falar de nossas mazelas e pequenezas...
O salmista quer nos levar em outra direção. Primeiramente, ele observa que existe muito o que se falar, quando pensamos nas realizações divinas: “São muitas as maravilhas que tens operado... São mais do que se pode contar” (v.5).
Antes de falar de Deus, porém, alguns outros sentidos devem ser exercitados. Primeiramente é preciso ter ouvidos para ouvir suas instruções, indo além de rituais e ofertas (v.6). O formalismo com que realizamos muitas das atividades ligadas à nossa espiritualidade muitas vezes nos leva a fazer as coisas de modo superficial. Não se trata de apenas ter ouvidos, mas de tê-los “abertos” por Deus. Não se trata de ouvir qualquer som, mas a instrução divina que pode ter o efeito transformador definitivo em nossa vida! Em segundo lugar, é preciso ter olhos para ver a vontade de Deus. Esse uso do sentido aparece na expressão “no rolo do livro está escrito a meu respeito” – a Palavra de Deus traz para nós o conhecimento de que necessitamos para a nossa vida, os planos e a vontade de Deus para conosco. Temos de abrir nossos olhos para ler a Escritura Sagrada como uma orientação divina, um mandamento a ser seguido e não somente como uma devocional que nos agrada no momento ou meramente nos inspira para o restante do dia! A Palavra de Deus é desafiadora, exige postura, resposta: “Eis aqui estou” (v.7), para o que der e vier! E em terceiro lugar, é preciso ter um coração que abrigue essas palavras. Uma fala que faz diferença não sai da boca, mas do interior. É fruto da alegria, não da obrigação (v.8a) e é fruto de uma profunda convicção interior (v.8b). Assim é que ouvindo, vendo e meditando sobre a Palavra de Deus, o salmista se torna preparado para falar sobre ela!

Os verbos da fala divina
O salmista usa frases afirmativas e negativas para falar a respeito de sua experiência com Deus:
“Proclamei as boas novas de justiça” e “jamais cerrei os lábios” (v.9)
“Não ocultei no coração”; “proclamei” e “não escondi da grande congregação”. (v.10)
A proclamação é o tipo da fala que não se pode fazer sem grande estardalhaço. Não é uma fala da conversa privada, mas o discurso público, político, profético. Ninguém proclama algo em voz baixa, a proclamação tem a característica da notoriedade. Hoje em dia, o testemunho da fé muitas vezes tem se tornado restrito e até inexistente. Quando muito, nos propomos a declarar as bênçãos recebidas. Não é disso que trata o salmista. Não é o que Deus faz por mim, senão a fala ainda maior, do que Deus é, de sua natureza. As boas novas são da “justiça divina”, um atributo de Deus muito valorizado no Antigo Testamento. Ele proclama a fidelidade, a salvação, a graça e a verdade de Deus (v.10). Devemos ir além do discurso do que Deus tem feito para proclamar a essência dele e da sua lei. Milagres e sinais são circunstâncias temporárias da vida humana e até mesmo são situações que podem enganar nossos sentidos e percepções, mas a natureza de Deus é imutável e eterna!

Convite à proclamação comunitária
O salmista volta a pedir a ajuda divina nos versículos seguintes, porque ele reconhece sua limitação humana e admite que seus problemas pessoais podem interferir na qualidade de sua proclamação, bem como seus inimigos são, de fato, ferozes e poderosos (v.12-15).
Mas existe força na proclamação comunitária da fé. Aqueles que buscam a Deus não ficam por demais presos em falar de suas tribulações, pois existe para eles a folga e o júbilo! (v.16). O salmista afirma que existe um discurso na boca das pessoas que amam a Deus e esse discurso consiste em exaltar o Senhor: “Seja Deus magnificado!” (edição revista e atualizada de João Ferreira de Almeida); “O Senhor é grande!” (NVI e TEB).
Na experiência pessoal e na convivência comunitária, que nosso discurso revele nossa experiência com este Deus que nos tira dos poços e buracos da existência, que nos põe em lugares altos e seguros, de onde nossa voz possa ecoar com mais facilidade. Deus nos dá a voz e o discurso, ele é que põe o cântico em nossa boca. De nossa parte, só resta proclamar...

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