sexta-feira, 29 de maio de 2009

Um clamor por justiça, uma atitude de fé (Salmo 94)

O Salmo 94 está entre os chamados “imprecatórios”, que são um gênero de salmo em que se pede o castigo contra os inimigos. A linguagem do salmista é bastante dura e ele se dirige a Deus, já de início, em termos jurídicos: ‘Deus das vinganças’ (Dt 32.35), juiz da terra (Gn 18.25; Sl 9.5; Sl 58.10; Sl 74.8; Sl 118.137). Por isso mesmo, é um salmo que nos fala de uma tomada firme de atitude, não meramente no aspecto individual, mas também coletivo. Ele nos fala da dimensão social e política da fé. E quando falo em política, desejo usar o termo em seu sentido original, pois a raiz grega “polis” significa cidade e política era a expressão usada para falar do cuidado com as coisas da cidade, da colevidade. Muitas vezes, as pessoas têm tomado posições como indivíduos, se focam apenas em si mesmas. O salmista parece extrapolar-se; de cantor, torna-se profeta. Sua palavra convoca outros ao não-conformismo e chama o próprio Deus para interferir numa situação que ele considera ultrajante. Não fala isso de perto a nós também?

Até quando? (v.3)
Ao abrir meu e-mail na manhã do dia 15 de abril, quando escrevi este texto, uma notícia falava sobre um deputado que pagou as despesas de viagem da namorada com dinheiro público. Outra dizia que os funcionários de trem de uma companhia carioca usaram socos ingleses e chicotes para conter os usuários.
Até quando, Senhor, até quando exultarão os perversos e ouviremos os homens do colarinho branco se gabarem nos tribunais, se recusarem a confessar seus crimes, saindo incólumes (v.4)? Até quando nossas viúvas e órfãos (v.6) esperarão pelos precatórios do governo (v.20) e os madeireiros vão devastar nossas florestas com o apoio de senadores, deputados, governadores e prefeitos? Até quando faltarão lápis, cadernos e livros para nossas crianças (v.5-6) e as pessoas agirão como se Deus não fizesse caso disso (v.7)?

Atendei! (v.8)
Há um poema do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) que diz:
Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro.
Em seguida levaram alguns operários/ Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis,/ Mas não me importei com isso/ Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho meu emprego/ Também não me importei
Agora estão me levando/ Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém/ Ninguém se importa comigo.


Preocupar-se apenas consigo mesmo é o que ensina o chamado neo-liberalismo, esse modo de pensar que domina em nosso mundo hoje e que se manifesta de várias formas, inclusive na religião. O resultado é o que o poeta descreve – se não nos importamos com os outros, quem se importará conosco? É por isso que o salmista conclama seus compatriotas e usa duas palavras pesadas para nos mostrar qual era o estado de ânimo das pessoas em seu tempo – estúpidos e insensatos (v.8)! Estejam atentos! O que está acontecendo é também resultado de inércia, de auto-proteção e auto-cuidado egoístas!
Ele fala sobre a severidade do juízo de Deus nos versículos 9-11, exaltando o fato de que Deus não criou as coisas e foi embora (como creem alguns), mas está atento e presente.

Quem se levantará a meu favor? Quem estará comigo? (v.16)
Se eu disser algo, perderei o emprego. Se eu reclamar, serei malvisto. Falta pouco tempo para conseguir o que eu quero, não posso me envolver na briga dos outros... São argumentos que se ouve todos os dias, em diferentes lugares. São empregados insatisfeitos que esperam que os sindicatos façam por eles o que não querem se arriscar a fazer por si mesmos. São membros de igrejas insatisfeitos com sua liderança pastoral ineficiente, que esperam silenciosamente até que o problema seja movido com outra nomeação para outro lugar. São líderes pastorais ensimesmados e desesperançados que esperam a mesma coisa, para ter a chance de viver a mesmice num lugar diferente. O mundo se tornou um lugar sem esperança – a instituição se tornou mais importante que a vida. Pessoas sendo menos do que as coisas... Autoridade sendo mais importante que serviço... Que atitude tomar?
O salmista é um “sindicalista” solitário, um “membro” espezinhado pela incompreensão, um “pastor” de quem se espera que sejam entregues as credenciais. Ele é um profeta como Elias ou Jeremias, sentindo o peso do ministério e a solidão de defender um ponto de vista diferente do dominante, o qual usa a lei como pretexto para sua maldade (v.20). É pesado, eu sei, mas se é para falar sobre atitudes frente à vida, então o enfrentamento é uma das mais importantes. A realidade não é boa – mas fechar os olhos a isso é negar a natureza do chamado divino.
A Igreja fechada em si mesma não poderá nunca ouvir o clamor da mulher violentada, da criança agredida, do desempregado faminto, dos povos oprimidos no mundo, que perguntam: “Quem se levantará a meu favor? Quem estará comigo?”. No Jornal Nacional, Fátima Bernardes anuncia as estatísticas de violência contra a mulher – metade dos brasileiros conhecem uma mulher agredida. Na mesma edição, uma Igreja Metodista, na África do Sul, contendo o insuportável cheiro de perseguição e fome dos refugiados do país vizinho, Zimbábue. Quem estará com eles e elas? Quem se levantará a seu favor?
Mas isso não está longe de nós. Além das necessidades econômicas de muitas de nossas famílias, enchentes e greves, vemos muitas vezes em nossas instituições brasileiras (e metodistas) prevalecerem falas contraditórias às ações. Justiça social, igualdade para todos, Reino de Deus lado a lado com discursos autoritários e imposições de cima para baixo... O salmista não estava falando de gentios e pagãos – do outro, ao qual sempre culpamos por nossas mazelas. Ele falava de si mesmo, do seu povo, de sua gente, chamada para ser “bênção entre todas as nações”, reconhecidos como “povo de Deus”.
A atitude que gera mudança tem que começar dentro de nossas casas, de nossas igrejas, de nossas instituições, para aí, sim, podermos falar algo. Isso me lembra a história de Gandhi: uma mulher foi procurá-lo para pedir que ele orientasse o filho para não comer açúcar. Gandhi pediu que ela voltasse uma semana depois. Então, disse ao menino que não comesse açúcar. A mãe lhe perguntou: Por que o senhor não falou com ele na semana passada? Gandhi respondeu: Porque na semana passada eu ainda estava comendo açúcar...

Se não fora o Senhor, minha alma estaria na região do silêncio (v.17)
Nos salmos, orar é também mobilizar-se. O salmista sabe que sua esperança está em Deus e que por causa de sua fé ele consegue fazer ouvir sua voz. A força de Deus é sua alavanca de resistência. Quando escorrega, apóia-se na bondade divina (v.18), quando estressado e preocupado, recebe o consolo de Deus (v.19). Ele confia que Deus não desamparará seu povo (v.14) e concederá descanso mesmo nos dias maus (v.12). Acho muito significativo que ele construa sua fé entretecida ao sofrimento. Todo o salmo é alternado entre a constatação da realidade e a afirmação da esperança. É como usar óculos bifocais – ver aqui e lá ao mesmo tempo, com a mesma clareza. Isso é atitude que promove a vida e a libertação. Só por isso podemos confiar que, ao final, o mal será exterminado (v.23). Essa postura de vida e esse engajamento é que faz a vida valer a pena. A vida em abundância tem o preço da verdade e da justiça. Sem isso, não passa de falácia. Esse é o desafio para nossa vida e para nossa Igreja nos dias de hoje. Os profetas se levantam e por meio deles a voz de Deus pergunta: Quem se levantará a meu favor? Quem estará comigo?

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