A questão missionária e de discipulado, obviamente, sempre esteve na pauta da discussão da Igreja, mas o recente enfoque na questão do crescimento (especialmente numérico) levanta desafios e questionamentos pertinentes. Podemos falar sob muitas perspectivas, mas gostaria de enfocar o aspecto relacional que deve estar presente quando se tem em mente essas duas palavras-chave da vida da igreja atualmente.
Missão, o que é isso?
Antes de mais nada, é preciso ter em mente o que é missão para nós. Do ponto de vista de conceito, isso tem a ver com nossos alvos, metas, estratégias e posicionamento. Segundo uma definição histórica que temos, nossa missão seria: “Reformar a nação, particularmente a Igreja, e espalhar a santidade bíblica por toda a terra” (Conferência dos Metodistas na Inglaterra, 1744). Cabe lembrar que esta “reforma” inclui os aspectos da espiritualidade, mas também a economia, a política, a sociedade, isto é, proporcionar as condições para que ocorra o “Reino de Deus e a sua justiça”.
No Plano para a Vida e Missão da Igreja, temos: “A Igreja deverá experimentar de modo cada vez mais claro que sua principal tarefa é repartir fora dos limites do templo o que ela de graça recebe de seu Senhor”. Sua missão é no mundo, pois “a missão de Deus no mundo é estabelecer o seu Reino. Participar da construção do Reino de Deus em nosso mundo, pelo Espírito Santo, constitui-se na tarefa evangelizante da Igreja” (PVMI, 3.ed., 2001, p.14). Assim, o PVMI define também que trabalhar na missão de Deus é “trabalhar para o Senhor do Reino num mundo espremido pelas forças do pecado e da morte, participando, como comunidade, com dons e serviços, para o nascer da vida. É somar esforços com outras pessoas e grupos que também trabalham na promoção da vida”. (p.17). Portanto, missão é tudo o que fazemos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que o Reino de Deus seja real e concreto no lugar em que estamos.
Tudo isso é muito correto, bem fundamentado e importante. Mas tenho aprendido uma importante lição: temos sido muito eficientes do ponto de vista conceitual ou racional. Devemos sê-lo também do ponto de vista do coração. Sim, a missão da Igreja deve emergir de seu coração. Todos os conceitos acima colocados têm a ver com relacionamentos e isso tem sido esquecido no decorrer de nossa caminhada. Cada vez que um movimento surge no seio da Igreja, ou uma aspiração aparece, logo corremos para dar a ela uma estrutura, debatemos em torno dos melhores nomes (quem dá nome, domina!) e começamos a estabelecer uma série de questiúnculas que fazem morrer o ardor do coração.
A missão da Igreja é a vida da Igreja, é sua razão de ser. A missão da Igreja são as pessoas! Se não, vejamos: reformar a nação, particularmente a Igreja... tendemos a ver essas duas esferas sociais como meramente instituições quando, na verdade, se trata de gente! Wesley e seus companheiros e companheiras reformaram a nação visitando órfãos, viúvas, presidiários; reformaram a igreja estabelecendo grupos pequenos nos quais as pessoas eram estimuladas a conviver, a respeitar, a ver seu próprio valor e a descobrir-se no espaço da vida e da fé como partes do plano de Deus para todo o mundo; reformaram sua sociedade combatendo os vícios pessoais que afetavam famílias e promovendo relações de respeito e afeto... Ensinaram as pessoas a pensar, a ler, a estudar, a cantar... Deram a elas espaço na liturgia dos cultos e da vida... Sua missão não estava nos tratados que escreviam, mas surgia primeiro da vida, do olhar, do encontro amoroso com o outro, na capacidade de converter-se a novos paradigmas sem perder de vista suas raízes e a força delas em sua história. A nação era minha rua, meus vizinhos, minha aldeia, gente com rosto, com história... A igreja era minha família celebrativa, meus companheiros e companheiras de bands, a gente que estava comigo no dia-a-dia da fé...
A missão transbordava em escritos, em hinos, organizava-se em conferências, estruturava-se numa organização porque primeiro transbordava do encontro entre pessoas. Organizava-se a estrutura em torno da missão e não o contrário. Este desafio, em grande medida, foi perdido de vista por nós e hoje consiste em um dos nossos mais sérios entraves à experiência de um crescimento orgânico, natural e saudável. É a crítica pertinente que se faz à nossa formação pastoral e leiga, à nossa visão conciliar e as formas pelas quais nossa administração se estabelece... Por trás de tudo isso, está a pergunta: como aquecer nosso coração para a missão? Como redescobrir a vocação missionária autêntica do “Tudo deixarei, tudo entregarei” que desafia a cada um, cada uma de nós hoje?
Missão, portanto, é aquilo no qual eu emprego minha vida, aquilo que me traz motivação interior, aquilo que arrepia meu corpo quando eu penso nas possibilidades, o que me sustenta nas horas mais difíceis da minha vida, as coisas das quais eu não abro mão. A missão de Deus tem que pulsar no meu coração e tem que ser a coisa mais importante para mim. E isso não vem de fora; é um impulso do Espírito Santo que só ocorre em função da conversão genuína. É uma experiência de renovação, de avivamento, sim, mas não das formas de culto, nem da hinologia, nem do tipo de sermão. É um avivamento de alma, é uma nova disposição de vida, é algo que move a pessoa de dentro para fora e independe das formas pelas quais se expressa. Reside no coração da pessoa e da comunidade e aí encontra seu espaço de realização plena.
Temos de aprender e recordar esta importante lição diariamente: a missão tem que ser a nossa vida e a nossa vida tem que ser fruto de nossa missão... Como ouvimos no concílio geral, é fazer da missão de Deus a nossa forma de ver o mundo e as pessoas; a visão da Igreja, corpo de Cristo, é a minha visão, a minha missão, meu modo de ser e estar no mundo. Se fôssemos usar uma figura, poderíamos comparar nossa missão com “atingir o alvo”: o alvo é a vida humana redimida; a flecha é a Palavra penetrante e redentora de Cristo; o arco envergado sob a vontade divina, o qual faz a flecha ir mais longe... este sou eu e é você!
Discipulado: como assim?
Em Mateus 10.24-33, à chamada para o discipulado seguem-se as orientações do que é ser um verdadeiro discípulo. Ele enfatiza que o chamado ao discipulado exige compromisso, o qual, por sua vez, requer opções radicais e nem mesmo a família pode ser mais importante do que a missão. Jesus quer demonstrar que havia outros grupos oferecendo soluções para a vida das pessoas, mas tais soluções não passavam pelo crivo do acolhimento, da primazia à vida ou do amor convidativo e amoroso. De fato, a história nos mostra que os fariseus reorganizaram o Judaísmo, tornando-o extremamente rigoroso no que dizia respeito às leis e práticas[1], depois da destruição do templo no ano 70. Eles ameaçavam de expulsão todas as pessoas que não seguissem as suas normas. Aquela comunidade foi posta diante de um desafio: os seus próprios irmãos e irmãs (judeus) esforçavam-se por vê-los renegar a Cristo. Daí, a necessidade radical posta pelo compromisso de fé em Cristo. Nenhuma pessoa, instituição ou qualquer outra coisa pode ser colocada acima dos compromissos estabelecidos pelo Reino.
Aqui, missão e discipulado se encontram. Se a missão é aquele valor pelo qual eu pretendo viver e morrer, então devo caminhar com as pessoas ao meu lado de modo que elas partilhem comigo este modo de vida. Devo ensinar, por meu exemplo, prática, modo de falar e viver, que esta missão vale o que eu digo que ela vale. E não podemos fazer discípulos se nossa vida cristã é institucionalizada, de horários marcados apenas, de agendas, reuniões e compromissos... Discipulado se faz no caminho da estrada, ao responder às questões que inquietam o coração humano, no processo de conhecer e ouvir o outro, de responder com honestidade e amor aos questionamentos que as pessoas trazem sobre a vida... É no partir do pão, nas orações intercessórias, no caminhar diário, no telefonema preocupado, na devocional inclusiva, na formação de uma liderança por meio do relacionamento pessoal profundo.
Tenho aprendido um novo modo de ver a missão e o discipulado no encontro com as pessoas de um modo novo... Fomos ensinados, por exemplo, que “ovelha gera ovelha” e, portanto, o pastor ou pastora deve cuidar do rebanho e, se quisermos alcançar pessoas, os membros devem recuperar seu zelo evangelizador... Mas como eles farão isso se não veem na vida do pastor e da pastora? Tenho de ampliar meus relacionamentos, ter mais amizades fora do círculo eclesiástico e conversar mais amplamente com outras pessoas sobre coisas que não sejam “só de igreja”. Tenho de saber da vida, do futebol, da moda, das novidades... das dores, dos anseios, dos projetos... tenho de saber de gente... E enquanto a amizade acontece entre duas, dez, doze, trinta pessoas no decorrer de nosso dia-a-dia, Cristo manifesta Sua graça salvadora, nós vamos angariando a simpatia do povo e assim, por este milagre divino, “o Senhor acrescenta aqueles e aquelas que se hão de salvar”. Qualquer estratégia de missão ou forma de discipulado pode dar certo se o coração está em chamas de amor verdadeiro, de zelo amoroso pelas coisas de Deus... Mas a melhor das ideias, o mais correto dos documentos jamais funcionará se houver verdade mas faltar amor...
Veja o exemplo do mestre: ele ensinava seus discípulos, contava-lhes história, partilhava Seus momentos de tristeza, receio e dor. Mas também os levava a jantares e festas, conversava pelo caminho afora, saía para pescar, observava com eles o que acontecia na vizinhança, orava por eles em segredo, dava conselhos sobre as mais diversas situações. Jesus Se importava. E o discipulado verdadeiro aconteceu enquanto a amizade autêntica era cultivada, enquanto o compromisso interpessoal era enfatizado.
Enfim...
Penso que nosso Concílio Geral foi muito importante neste sentido. Tentamos, de alguma forma, humanizar mais nossos processos, nos preocupar em evidenciar a importância da pessoa humana neste contexto de discipulado e missão. Mas é um caminho que está apenas começando... Eu oro para que possamos avançar e construir não uma denominação forte e numerosa, mas um povo de Deus, uma família da fé, uma comunidade a serviço... Assim seja.
Hideide Brito Torres
[1] Daí o surgimento dos termos farisaico, farisaísmo como uma conotação sociológica relacionada com o caráter ou hábito dos fariseus de serem extremamente exigentes no cumprimento das questões legais, sem contudo, evidenciá-las em sua prática ou fazê-lo sem colocar no centro a vida humana e seu valor.
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