Lucas 1.67-79
Outra vez recorro a um salmo fora dos Salmos para falar de criança. No Natal, o cântico de Maria inspirou nossa coluna. Agora, trago à memória a canção de um pai, celebrando a chegada de seu filho, sua esperança, sua memória e seu nome para a posteridade.
Numa casa de sacerdote, onde o culto devia emanar em cada palavra, um novo som se faz ouvir. Não é um alaúde, não é uma cítara, não é uma harpa. É um choro de criança que faz salmodiar...
Ele divide seu canto em duas partes: uma que fala do passado (68-75) e outra que fala do futuro (76-79). A festa pela chegada de seu filho lembra a Zacarias toda a tradição do seu povo e toda a esperança que ele sempre carregou consigo. Tudo isso explode numa expressão de louvor, conhecida como “Benedictus”.
Bendito seja o Senhor, que visitou e redimiu o seu povo... plena e poderosa salvação
Certa vez, li um pensamento que dizia algo parecido com “cada criança que nasce é um sinal de que Deus ainda acredita na humanidade”. Uma espécie de voto de confiança, enfim, de que um mundo novo e melhor pode surgir a partir de uma nova criaturinha que chega para encantar e recomeçar. Essa também é a esperança de Zacarias frente ao pequenino João, que nasce em cumprimento de uma profecia e de um milagre.
Em primeiro lugar, sua canção é de gratidão e reconhecimento. Na chegada do bebê, é Deus mesmo que visita seu povo e o salva, não de qualquer modo, não de forma passageira, mas com uma salvação que é plena e poderosa! Que bom saber que nossas crianças podem inspirar tão grande esperança! Que nós possamos ver nossos filhos e filhas como uma visitação de Deus a nós! Isso pode nos inspirar, como Zacarias, a viver sacerdotal e devotadamente a eles, como mediadores entre nossos pequeninos e o seu Deus, de modo a infundir-lhes fé, temor, alegria e intimidade com esse Pai terno e eterno, que é nosso Senhor!
Para nos libertar dos nossos inimigos e usar de misericórdia com nossos pais
São muitos hoje os inimigos da vida, em especial, os inimigos da infância: a fome, a violência, o despreparo dos pais, a gravidez indesejada, o uso de drogas, o sexo indiscriminado e gerador de enfermidades, algumas incuráveis; a precocidade materna e paterna... Entretanto, ainda quando a criança que nasce encontra tudo isso desfavorável à sua vida, ainda assim pode ser fonte de libertação e de misericórdia. Isso, porém, não pode ser fruto do acaso, nem uma honrosa exceção (me vem à mente aquela propaganda do menino de rua que se tornou professor, educador e pai adotivo...), mas uma visão assumida, concretamente, pelos cristãos e cristãs de nosso tempo. Na época da Igreja Primitiva, havia uma postura, assumida pelos seguidores e seguidoras de Jesus, de resgatar as crianças entregues à morte nas praças romanas, abandonadas e desprezadas. Hoje, infelizmente, vemos muitos projetos sociais de nossas igrejas à míngua por falta de visão das comunidades, dos líderes, dos pastores e pastoras, dos órgãos de decisão os mais diversos, do governo federal e afins... De modo gritante em nosso mundo, enquanto proliferam os acordos comerciais com países como a China, meninas de peito e de colo morrem de fome e maus-tratos em lugares chamados de abrigos... Órfãos do tsunami são comercializados na Ásia... Filhos da guerra são desprezados entre sérvios e bósnios... Rejeitados de seus lares dormem sobre as marcas de sangue dos meninos da Candelária... Pequeninos carregam nas mãos as drogas que lhes tirarão a vida ainda em flor nos morros e favelas... Antes que as crianças sejam nossa libertação, é preciso que as libertemos no aqui e agora. Como Zacarias, somos os sacerdotes daqueles que nasceram para serem profetas e profetisas do Altíssimo!
Conceder-nos que, livres, o adorássemos sem temor, em santidade e justiça
A promessa de Deus repousando no corpo frágil do bebê João é promessa de vida abundante. Que é essa vida senão liberdade, confiança, santidade e justiça? Que modo melhor de viver senão em poder andar altaneiramente? Essa promessa de Deus, lembra Zacarias, foi feita a nossos pais e a Abraão. Esse menino é promessa feita gente; ele é fonte inesgotável de alegria e de esperança. Gente, temos de cuidar desse menino, porque ele é nosso tesouro de fé! Temos de protegê-lo porque sua presença significa que Deus não se esqueceu de nós!
De fato, esse sentimento sobrevêm a todo pai ou mãe que olha sua criança dormindo em sua cama. Sua tranqüilidade, sua inocência, sua respiração leve nos dão um tremor por dentro, um desejo de mudar o mundo para que nosso pequenino ser não sofra. Uma vontade de ser melhores, de fazer a vida dar certo... Quanta coisa boa uma criança inspira, se formos capazes de ouvir seus gritinhos, choros ou risos como quem ouve uma canção do céu... Sim, os pequeninos nos levam a adorar sem temor, a desejar a justiça, a promover a santidade, porque sua existência promove em nós o impulso do bem. Daí talvez Jesus ter dito que precisávamos nos tornar como crianças para alcançar o Reino.
Tu, menino, serás chamado Profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor
Algumas vezes na Bíblia se contam narrativas de violência contra as crianças: aquelas que morreram para que o Faraó e Herodes resguardassem seus tronos (Ex 1; Mt 2.16-18); aquelas que foram vendidas para cobrir dívidas (2Rs 4.1); aquelas que foram obrigadas a se afastar porque foram consideradas indignas pelos adultos (Mc 10.13); aquelas que foram feitas escravas em guerras que não eram delas (2 Rs 5.2). Algumas dessas narrativas são tão incutidas em seu tempo, que os autores não parecem nem mesmo discordar da prática. Por isso, Deus, ao longo da história, veio tocar o coração e a vida das pessoas em uma nova disposição, para ajudá-las a ver que ele defende o direito dos pequeninos (Gn 22).
Mas aqui, algo inusitado acontece: um pequeno vem diante do Senhor, Todo-poderoso. O Cristo, o Salvador, é precedido por um menino. E ele mesmo é um menino! Que surpreendente para um povo acostumado à história de reis, exércitos, cavaleiros, conquistadores! A festa e a dança acontecem porque a salvação chega ao som de um choro de criança!
Para dar ao seu povo conhecimento da salvação pela remissão dos pecados
João é visto aqui, por seu pai, como um cooperante do ministério da salvação que virá com o Cristo. A criança diante dele é um sinal não apenas de que a salvação existe, mas de que as pessoas tomarão conhecimento dela! Que bom é saber que esse novo tempo que Deus inaugura com essa criança é um tempo de não haver segredos! Ainda mais, que o conhecimento não vai gerar um grupo de superiores, detentores do poder, mas é um conhecimento para o povo, um conhecimento que retira os pecados, que acaba com o mal! Quanta alegria deve ter sentido o povo ao redor ao ouvir a boa notícia de que esse menino é portador de um conhecimento libertador... E nossas crianças hoje não o podem ser também?
O sol nascente nos visitará por causa da entranhável misericórdia de Deus
Em termos de imagem, como é lindo um pôr-do-sol! Mas só quem já experimentou a dor de uma longa noite reconhece o valor de um sol nascente (como diz aquele outro salmo: “minha alma espera pelo Senhor, mais do que os guardas pelo romper da manhã”). Sim, a esperança que vem com esse menino é a esperança de que um novo dia nasce para toda a humanidade. E isso não é obra do acaso, mas é por “causa da entranhável misericórdia de Deus”. Ou, para usar a expressão mais poética da tradução da Bíblia de Jerusalém: “graças ao misericordioso coração do nosso Deus”. A NVI fala sobre “as ternas misericórdias do nosso Deus”. Sim, acho mesmo que a figura de um bebê descreve bem a ternura de Deus...
Uma ternura que possibilita uma nova luz, que vem para iluminar de vida quem só conhece as trevas da morte (Is 9.1) e guiar os pés no rumo da paz. Esse é um sonho de criança, que Zacarias traz em seu canto, em sua ação de graças a Deus e reafirmação de suas promessas do passado e para o futuro. Por isso, se formos mesmo capazes de perceber a ternura de Deus na vida de nossas crianças, é bem capaz de sentirmos um cheirinho de talco ao abrir nossa Bíblia e ler essa canção. E se nosso coração estiver bem tocado por essa ternura, vamos ouvir a voz de Deus por entre risos e choros de todos os bebês ao redor... “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel”, nosso Deus!
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