Sonhar a partir do que já foi vivido...
Não dá pra saber, obviamente,
qual a idade de um salmista... não temos pistas suficientes. Mas como salmo é
poesia, isso abre um leque de possibilidades para a imaginação. E quando ele
começa sua oração dizendo a Deus que ouviu o que os pais contaram, então... eu
posso imaginar, com toda licença poética, que se trata de um jovem! Ao menos,
não é uma pessoa idosa!
A memória tem sido desprezada
como fonte de sonhos, mas ela é fundamental na narrativa bíblica. É a partir do
passado que desenhamos nossa identidade, que nos posicionamos no mundo. Ela é
um referencial para nossas esperanças futuras. O passado pode nos fazer sonhar.
No entanto, cada vez mais, vemos
as pessoas desprezando o passado. Dizendo que “lugar de coisas velhas é no
museu” – uma frase famigerada para quem não sabe que um povo sem memória é um
povo sem futuro. O museu serve, exatamente, para nos mostrar por onde ir e por
onde não ir enquanto construímos nosso futuro, evitando os erros do passado e
aprimorando seus acertos.
A memória também fala de
testemunho – “nossos pais nos contaram” (v. 1). Este contar faz a diferença,
constrói a história, forma a fé. É ouvindo o que Deus fez que começamos a
sonhar com o que ele poderá fazer. Contar é fundamental e ouvir também. O sonho
que vem do contar e do ouvir é resultado de um encontro de gerações neste
salmo. É interessante a profecia que diz que os jovens terão sonhos e os
velhos, visões. Geralmente esperamos o contrário. Aquele que é visionário é o
impetuoso, o ousado e isso, de modo estereotipado, é um valor agregado ao
jovem. O idoso, por sua experiência e (assim achamos) calma diante da vida, tem
sonhos. Tem esperanças. Mas o encontro da visão dos idosos com os sonhos dos jovens
cria o mundo novo do Reino de Deus. Jovens que sonham, que têm expectativas,
estão sempre prontos a ouvir uma boa ideia, um bom conselho, venha de onde
vier... Jovens firmados na palavra certamente não deixarão escapar a memória
salvífica e o testemunho do que Deus já fez.
Sonhar, apesar das circunstâncias do presente
O momento atual do salmista e do
seu povo não era dos melhores. A maior parte do salmo consiste em falar dessas
circunstâncias, que apontam para uma calamidade nacional. Os inimigos estão ao
redor e ele sabe que não pode vencê-los a partir de suas próprias forças, como
ocorreu com seus pais no passado (v. 6 cf. v. 3).
Os momentos difíceis, para muita
gente, é hora de fuga da realidade. O sonho, no contexto do salmo, não tem a
ver com fuga, mas com livramento. Por isso, apesar das dificuldades, o salmista
ressalta sua fidelidade à aliança e a Deus (v. 17-18). Somente esses versículos
seriam suficientes para descrevermos uma ampla defesa para aqueles que gostam
de dizer que os sofrimentos pelos quais passamos são resultado de nossa falta
de fé ou de nossos pecados. Nem sempre, atesta o salmista, à guisa de Jó, outro
personagem célebre por seu sofrimento e injustas acusações.
Ao contrário, o salmista diz que
é justamente por causa de sua fé que eles, como nação, sofrem tais ataques (v.
20-22). Assim sendo, entram na galeria dos bem-aventurados de Mateus (5.10).
Para se sonhar os sonhos de Deus, muitas vezes é preciso ir contra o senso
comum, contra as ideias preconcebidas da sociedade, contra os princípios do
mercado. É um sonho de resistência e de persistência. Não se pode desistir dele
e é preciso defendê-lo dos ataques externos – a carne, o mundo, as forças
espirituais... as circunstâncias ao redor não favorecem os sonhadores de Deus.
Tudo o que eles almejam parece tão fora da realidade. Os valores que defendem
parecem tão fora de moda... E eles precisam resistir e persistir...
A situação não era boa para o
salmista e seus contemporâneos, mas todo o tom do salmo aponta para esta
resistência do sonho que eles carregavam em si e sua busca pela fidelidade à
aliança. Eles clamam a Deus para que os defenda (v.23-24). Aqui está o segredo
da resistência: o sonho vem de Deus! Ele é a fonte da esperança que alimenta os
sonhos. Por causa de sua origem, o sonho pode vencer as adversidades da vida!
Sonhar, por causa das possibilidades do futuro
Esta é a parte do salmo que nos
resta imaginar... o texto termina com a nota de esperança, o pedido a Deus para
que se levante e defenda seu povo. Este é a contribuição que temos a deixar
hoje para a nossa geração e para as gerações futuras. A perspectiva de que já
vivemos dias bons, que já experimentamos em nosso passado a presença tangível
de Deus. Já recebemos livramentos. E ainda que nosso hoje nos pareça atemorizante,
podemos aguardar a promessa de que o sonho se concretizará no futuro. Por isso,
é importante seguir contando, seguir lembrando, seguir crendo...
O sonho, para nós, cristãos e
cristãs hoje, não pode se limitar à nostalgia, que é a ideia de que o ontem foi
melhor do que o hoje é. Nem escapismo, por achar que o futuro é que vai trazer
as respostas que nos faltam no momento. O sonho é um caminho de fé que se
percorre no dia a dia, com as âncoras do passado e as ferramentas do futuro.
Por ser proveniente da perspectiva do reino, o sonho é, embora ainda não...
como o Reino de Deus.
Por isso mesmo, ele exige
compromisso, engajamento, um senso de pertencimento que nos liga a todos os que
caminharam por estas trilhas... não pode ser vivido levianamente, nem moldado
segundo nossos desejos ou construído por nossas forças. O sonho de Deus emana
da aliança que temos com ele, essa mesma que fizeram os que viveram antes de
nós e que temos de deixar para os que vierem depois, até que Cristo retorne!
Hideide Brito Torres
Acho que estou como o salmista, entretatanto, sem a mesma esperança sonhadora. Mas, vamos lá, né? Valeu pela meditação!
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