Diz Bonhoeffer: "Em épocas bem estruturadas, nas quais vigora a lei e o transgressor da lei sofre a proscrição e a expulsão, é nas figuras do publicano e das prostitutas que o Evangelho de Jesus Cristo se torna visível aos homens. "Os publicanos e as prostitutas hão-de preceder-vos no reino dos céus." (Mt 21.31). Nas épocas conturbadas em que, soberanas, triunfam a ausência de lei e a maldade, o Evangelho revelar-se-á sobretudo nas figuras dos poucos que permaneceram justos, verdadeiros e humanos. Outras épocas já viveram o fato de os maus irem ao encontro de Cristo e os bons permanecerem longe dele. Nós vemos de perto os bons reencontrarem Cristo e os maus esconderem-se dele. Outras épocas puderam pregar: se antes não te tornares um pecador, como este publicano e esta prostituta, não poderás reconhecer nem encontrar Cristo. Nós deveremos antes de dizer: se antes não te tornares um justo, como este que luta e sofre pelo direito, pela verdade, pela humanidade, não poderás reconhecer nem encontrar Cristo. Ambas as proposições são igualmente paradoxais e em si impossíveis. Mas definem a situação. Cristo pertence ao mau e ao bom, pertence aos dois apenas como pecadores, isto é, como apartados da origem, no seu mal e no seu bem. Chama-os à origem, para que já não sejam bons e maus, mas pecadores justificados e santificados. (…)"
Esta palavra é muito forte - e verdadeira. A igreja está cheia de "santos" - e talvez precise de mais pecadores. Ou de mudar sua acepção de santidade. Reconhecer-se como pecador é um passo primeiro para a santificação. Tanta gente que nada sabe sobre caráter falando de integridade. Tanta gente com manchas inaceitáveis em suas vidas, estendendo dedos acusadores às sujeiras dos outros... E eu também... eu também! Chega de autojustificativas, chega de desculpas, chega de transferências. Permita-me, Pai amado, Cristo de todos os caminhos, Espírito Santo de todas as interpretações... permita-me chegar a ti neste dia e declarar meu pecado tão sujo, tão profundo, tão meu.
"Senhor, eu pequei - e peco" - eis a razão pela qual necessito que te aproximes de mim, me inspires e me perdoes. Não quero ser boa - nem o posso ser. Mas, desesperadamente, quero ser redimida, pois disso é que careço e sem o qual a bondade - que és tu somente - jamais poderá aparecer por meio de mim. Não posso, sem tal redenção, entender o preço do perdão e nem ao menos praticá-lo. Sem entender a redenção, minha mente se enevoará com a falsa ideia de que este mundo irá mesmo de mal a pior. Sem a tua redenção, jamais poderei ter a esperança que gera mudança.
Então, sim, confesso. Eu pequei. E tenho pecado, pois que não tenho estado tão perto de ti quanto deveria. Tenho pecado pois não tenho sido justa, lutando pelo direito, pela verdade e pela humanidade, como exorta Bonhoeffer. Porque tenho me acomodado às instâncias eclesiásticas, acreditando que por meio de editos e sermões se constrói o caráter, enquanto me chamas às ruas, aos becos, às avenidas para ver na dor do outro a possibilidade da mensagem mais eficaz, porque sem palavras, sem discursos e totalmente inteligível.
Acho que só agora entendo Paulo, com seu espinho na carne, com seu senso de maior dos pecadores, tentando tanto fazer o bem e não conseguindo, sendo assoreado pelo mal. Hoje são poucos que assumem, Senhor, como são grandes as suas tentações... parecem tão bem-sucedidos, tão certinhos, tão ausentes do mal... será? Escuto tua voz, que me diz que a graça me basta. E posso sabê-lo, mas eu peco, Senhor, pois ainda tenho medo... Mulher de pequena fé - por que duvidaste? - me perguntas... Não sei, Senhor... não tenho motivos para duvidar, mas esse bicho-gente que fizeste é assim, uma contradição só... E sinto que é melhor confessar logo, que és esse Pai que abraça e perdoa...
Tenho olhado para minhas feridas enquanto outros sangram. Daí que nem curo a mim - o que não consigo, efetivamente - e nem aos outros - que é o que anseias fazer por meio de mim.
Senhor, eu pequei. E por graça, antes de me perdoares, me faças compreender qual a altura, e a profundidade, e a extensão, e a largura do meu pecado, pois só assim poderei entender essas mesmas dimensões do teu amor. Só assim vou ser capaz de perdoar o pecado tão pequeno que contra mim cometeram e que me parece tão difícil desculpar às vezes. E só assim vivenciarei o perdão que só tu ofereces. Copiosamente, me faz entender quão pecadora sou - pois só assim tua graça me amplia os horizontes. Só assim poderei entregar-me em obediência. Só assim poderei viver não por mim mesma, mas por ti.
Tira-me da minha insignificante e pretensa santidade, com a qual muitas vezes justifico meus erros ainda tão mesquinhos... imerge-me no teu olhar sobre o meu pecado e só então levanta-me, novamente, totalmente limpa, totalmente sarada, totalmente nova - porque totalmente em ti. E só então, porque totalmente em ti, usa-me... pois só aí poderei honrar-te como mereces, amar-te como requeres, servir-te como esperas, perder-me em ti como tanto quero e pareço jamais conseguir.
Por essa graça, relembra aqueles sonhos que me fizeram ingressar nesse caminho... torna-me tão insignificante quanto eu possa ser, para ser relevante como tu queres. Eu sei que o caminho do céu é o caminho dos pecadores, tão esvaziados de si que puderam ser cheios de ti. Dá-me a angústia de sofrer por ti, ao invés da mesquinharia de sofrer por mim, como sói acontecer. Dá-me a angústia de olhar um mundo que descrê de ti porque já descreu de si mesmo e assim, ser capaz dessa esperança que vai contra a esperança - teimosa, rebelde, divina... simples como uma flor que brota em meio ao deserto; como um pássaro em extinção que não se nega ao último canto; como uma criança que saboreia o gosto da primeira vez... Esperança que redime dentre as lágrimas o olhar lavado da dor. Esperança que tira do centro o mundo dos sábios e exalta os loucos. Esperança que tira vida da cruz... Esperança que só sente aquele a quem Deus chama de santo, pois entendeu, plena e livremente, que é um grande pecador!
Amém...
"A palavra da Igreja ao mundo só pode ser a palavra que Deus dirigiu ao mundo, ou seja, Jesus Cristo e a salvação neste nome. Em Jesus Cristo encontra-se definida a relação de Deus com o mundo; não conhecemos nenhuma outra relação de Deus com o mundo fora daquela que passa por Jesus Cristo. Por isso, nem sequer para a Igreja existe outra relação com o mundo a não ser aquela que passa por Jesus Cristo; ou seja, não a partir do direito natural, do direito racional, do direito humano, antes somente a partir do Evangelho de Jesus é que nasce a justa relação da Igreja com o mundo. (…)" - Bonhoeffer
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