Muitos escritores, poetas e
filósofos, homens e mulheres do presente e do passado, construíram para nossa
sociedade um certo campo simbólico em torno das estações do ano. Desta forma,
podemos até achar estranho que alguém se sinta alegre quando chove ou fique
triste diante de um pôr-do-sol. Criamos uma série de sensações e sentimentos,
relacionados com o clima e o tempo, mais por associação afetiva, de cores ou de
palavras do que exatamente por um fenômeno observável. Contudo, cá estamos,
diante da primavera e sendo convidados a refletir sobre a alegria e o
contentamento. Portanto, vamos dar nossa contribuição à construção do sentido
de alegria!
Uma alegria resistente que rompe
Talvez uma associação que podemos
fazer entre a primavera e a alegria, à luz do salmo que escolhi para meditarmos
hoje, seja o fato de que esta estação do ano nos fala que as flores e os frutos
são gerados em um ambiente de muita dificuldade. O salmista faz isso também
quando ele conta, ainda que de modo genérico, suas tribulações: a oposição dos
inimigos (v.1); algum tipo de enfermidade séria (v.3; v.9); algum problema
súbito que o surpreendeu e desorientou (v.6-7) e sua tristeza diante dos
acontecimentos (v.11). Tudo isso entremeado de narrativas de orações feitas e
do livramento concedido.
Jesus mesmo disse que se o grão
de trigo cair na terra e não morrer, ficará só, mas se morrer, dará muito fruto
(Jo 12.24). A primavera nos fala das sementes que vêm, desde o outono, meio
dormentes, venceram as baixas temperaturas do inverno e agora rompem suas
próprias cascas para germinar. Depois de crescidinhas, outra ruptura, em
caules, folhas e brotos, para que as flores nasçam, por sua vez, abrindo
caminho aos frutos. São muitas rupturas e transformações que podemos facilmente
associar às nossas vidas. As alegrias devem ser sempre celebradas, pequenas ou
grandes, porque, em geral, elas representam períodos de rompimentos, de perdas
que eventualmente foram superadas ou de esperas que chegam ao fim.
Uma alegria exuberante que floresce
O autor de Cantares descreve a
chegada da primavera: “O meu amado fala e me diz: Levanta-te, meu amor, formosa
minha, e vem. Porque eis que passou o inverno; a chuva cessou, e se foi;
aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola ouve-se
em nossa terra. A figueira já deu os seus figos verdes, e as vides em flor
exalam o seu aroma; levanta-te, meu amor, formosa minha, e vem” (Cantares
2.10-13). Este vicejar da vida encontra eco no Salmo 30, quando o escritor
descreve os sentimentos de que é tomado após as dificuldades enfrentadas: ele
exalta a Deus (v.); sente-se em folguedos e usando a alegria como cinto (v.11)
e deseja cantar louvores sem se calar, para sempre (v.12).
Essas descrições nos falam que a
alegria não pode ser contida. Assim como quando vemos flores, em geral nossos
olhos são tomados pelo encantamento, pela visualidade dessas cores que
explodem, que invadem, que estão em toda parte. Elas enchem o olhar, aguçam os
sentidos, convidam à contemplação e ao êxtase.
Também parece haver um equilíbrio
que vem da natureza para dentro de nós. Na primavera, dia e noite são iguais...
nem dias tão longos quanto no verão, nem noites tão compridas quanto no
inverno. Equilíbrio é um termo que nos remete à saúde, não é? Estamos sendo
convidadas pela estação e pelo salmo a encontrar o florescimento de nosso
equilíbrio interior, pois ao mesmo tempo em que o salmista expõe suas dores,
tormentos e problemas, ele recorre à oração, ao clamor, à fé e à esperança para
manter-se em atitude de ansiosa e alegre expectativa pelo futuro, pois a morte
não serve para nada (v.9), mas a vida, em sua plenitude, exalta a Deus...
Sua alegria deve ser convidada a
florescer. Talvez você não seja uma pessoa muito expansiva e sua alegria seja
pequenina e colorida como a violeta. Talvez você seja mais emotiva e
temperamental e sua alegria seja como grandes rosas vermelhas, penduradas na
ponta de ramos fortes e verdes, mas um pouco espinhosos... Ou ainda você seja
uma riqueza particular, como uma tulipa, uma orquídea, com flores raras e
imaginativas... Não importa sua personalidade, você pode florescer em alegria.
Assim como não importa que qualidades ou que características a planta tenha,
sua flor sempre encontrará um olhar disposto à contemplação. Mas é preciso a
coragem de mostrar-se, mesmo em meio às dificuldades, crendo que o inverno, ao
menos desta vez, passou.
Uma alegria simples que celebra
O bispo Josué Adam Lazier
escreveu, certa vez, que o salmo 30 trata-se de uma “oração simples”. Do ponto
de vista do gênero literário, trata-se de um salmo de ação de graças. Eram
canções usadas no culto doméstico ou nas reuniões públicas. Para o bispo, esta
é uma oração simples porque ela tem três características: a pessoa confia em
Deus; a pessoa reconhece as ações divinas e a pessoa agradece a Deus.
A primavera é uma estação do ano
que nos convida também à simplicidade, item necessário para a celebração. Se
procurarmos demais, se atentarmos por demais aos detalhes, vamos ser como
aquela noiva que preparou o casamento dos sonhos, mas estava tão ansiosa que a
festa passou sem que ela mesma aproveitasse. Agora, diante das fotos, certa
nostalgia lhe vem... certo vazio... Nossa vida não pode passar diante dos
nossos olhos sem que nos atentemos a ela. A alegria genuína, muita gente atesta
ao longo da história, está reservada nos momentos singelos. Grandes
acontecimentos nos fazem pular de júbilo de vez em quanto, mas são as
alegriazinhas que brotam pelos cantos da existência que nos sustentam e nos
lembram o cuidado amoroso de Deus diariamente. É preciso celebrar, parar e
sorrir, observar, cheirar as flores, antecipar os frutos. E recordar que não é
preciso muita preocupação, nenhum mal durará para sempre, pois vem a noite e
depois a manhã, vem a noite e depois a manhã... Mas hoje, neste momento exato,
é manhã de primavera e é preciso aproveitar o dia, com essa alegria que vem
tomar café com a gente (v.5).
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