sábado, 3 de dezembro de 2016

Sobre perfumes e cartas: falando de Jesus (2 Coríntios 2.14-3.6) - Sermão do culto de consagração ao episcopado

O bispo João Carlos me explicou, recentemente, que a pregação do culto de consagração de uma pessoa ao episcopado é muito esperado pelas audiências. As pessoas esperam que o bispo ou bispa compartilhe com eles sua visão para a Região e a Igreja. Então, imagino a expectativa sobre o que eu vou dizer hoje. Ainda espero pelo dia em que vou pregar um sermão para comover multidões, como aqueles que a gente lê nos livros de história. Não sei se será hoje. Mas eu tenho certeza e confiança de que terei cinco anos para compartilhar o que eu imagino, penso ou sonho acerca de projetos de expansão, acerca de avanço missionário, acerca de estruturas e também de missão e outras coisas eclesiásticas.
Mas é que hoje eu queria mesmo era falar de uma coisa muito importante para mim. Eu quero falar de Jesus. E quando eu falo dele mesmo, dele purinho, dele apenas, não tem jeito: meu lado meio poético emerge. Eu sou encantada por Jesus e pelo que Ele fez na minha vida. Pelo modo como Ele dá sentido à minha vida e preenche meu coração de alegria e esperança. Então eu quero falar, usando as metáforas de Paulo, sobre Jesus e eu a partir de cheiros e de cartas. É um sermão sobre como eu imagino que deva ser a nossa vida interior com Jesus, aquela mesma que vai sustentar a igreja, o ministério, a estrutura, a missão e o discipulado. Aquela que é mesmo como que o esqueleto desse corpo vivo, Igreja.
Dizem os entendidos que Paulo, quando escreveu este texto, tinha em mente o desfile romano após uma guerra. O cheiro da vitória emanava dos incensos acesos e das pétalas de flores que o povo lançava sobre os soldados enquanto estes passavam, cansados, exaustos e vencedores, pelas ruas da cidade, apresentando seus troféus da vitória. Assim, Deus nos conduz em triunfo, como soldados que retornam, espalhando por toda a parte o perfume do conhecimento dele.

Sobre perfumes
Eu venho de uma igreja pequena. Quando eu era criança, a gente não participava da ceia do Senhor. Era coisa de gente grande, entendida dos mistérios do além. Gente que sabia o que é o sacramento. Coisa séria, que a gente tinha de fazer cara de tristeza para participar. Chamava-se a isso reverência. E é, porque a contrição faz parte da nossa espiritualidade. Mas a alegria também.
Eu chegava à igreja nos dias de ceia com a certeza do diferente. A igreja inteira cheirava a pão e a suco de uva. Era impossível ficar ali sem aquela presença. Era uma coisa tão significativa que eu acho padaria coisa sagrada. Não consigo comer pão sem a sensação estranha de que, a qualquer modo, vou ouvir as palavras: “Este é o meu corpo...” ou sem visualizar, ainda mais quando o pão está quentinho, Jesus partindo, dando graças serenamente e me convidando pra comer. Era um cheiro que, na minha infância, me convidava a persistir para chegar a hora em que eu ia poder comer também, como gente grande, na mesa do mestre que nos mandou ser como crianças.
Outra coisa que cheiros me lembram é relacionamento. Existe gente exagerada, cujo perfume se espalha e chega antes dela. Gente assim geralmente é alegre e extrovertida, não tem medo de ser feliz. Mas existe gente discreta. Gente que, para sentir o perfume delas, requer também que se ouça o coração. Só o abraço revela o perfume e pra aproveitar a gente precisa prolongar o abraço. Pra mim, Jesus é as duas coisas. Já houve dias na minha vida em que Ele chegou antes, espalhafatoso, abundante, impregnando as coisas todas da presença dele. Geralmente ele faz isso nos momentos em que eu esqueço de me lembrar. Lembrar sua misericórdia, sua presença, seu modo de preencher minha vida.
Mas muitas vezes, Jesus foi discreto, me convidando para a intimidade com ele. Era preciso aceitar a acolhida do seu abraço para sentir o cheiro da sua presença. Nessas horas, era conforto, era a parada necessária, o recomeço. Nesse perfume da intimidade Jesus curou minha alma das mágoas, das dores e dos pecados – um tipo de cheiro que a gente só pode usufruir se tiver a coragem de chegar muito perto de Jesus. Tanta gente tem medo disso ainda! Tanta gente anda comprando perfume, que nem a igreja de Laodicéia, para esconder os maus cheiros de sua alma, pelo medo de ser banhado pelo Espírito, de ser lavado pela água viva, de ser envolvido pela fragrância do conhecimento de Deus, que também é conhecimento da gente... Mas eu quero lhe  garantir que foi esse cheiro de pai, de irmão mais velho, de mestre da minha alma que me permitiu resistir a tanta coisa. Esse cheiro apenas permite à gente suspirar, respirar fundo, pausado, vivendo. Só esse cheiro de perto, inspirado assim, vira “ruah”, sopro de Deus, na vida da gente.
Não dá para falar de sonhos, de projetos, de ideias, sem esse cheiro de vida dentro de nós. Somos seres apressados, respirando em ritmo de corrida o  tempo todo. Achamos que sabemos o que é a vida. Queremos ditar coisas para o Deus todo poderoso. Mas, há um segredo entre nós e Deus, um segredo que ele só revela aos que entram em aliança, em relacionamento com ele. Um cheiro de vida que só bem de perto, que nem João no dia da Ceia, só reclinando no peito do mestre a gente pode sentir, respirar e viver. É por isso que pra mim a ceia tem mesmo a ver com o que Rubem Alves, falava, da saudade. O cheiro de Jesus para mim é como quando meu avô morreu e um dia eu entrei no quarto da minha avó e ela estava sentada na cama, com a camisa dele entre as mãos, pegada ao rosto, de olhos fechados, serena, cheirando... Aquilo sim, era uma verdadeira oração! Assim é o perfume de Cristo, que a gente cheira paradinho enquanto a vida corre. E depois vai com o cheiro na alma viver o dia, ao qual basta seu mal.
Sobre cartas
Hoje, a gente perdeu a graça de esperar uma carta pelo correio. Quando o carteiro deixa uma carta, existe nela também perfume, toque. Graciliano Ramos escreveu para a esposa dele, distante, alguma coisa sobre como era prazeiroso segurar uma carta que ela escreveu, porque era um jeito de dar-se as mãos. Naquele papel, a mão de quem escreveu e a mão de quem está lendo se unem. Nós somos cartas vivas, diz o apóstolo. É na vida da igreja hoje que a mão de quem se sente perdido, sozinho, carente de salvação encontra a mão do Senhor dos Senhores que andou e viveu nesta terra, e segue vivo em nós.
Eu me lembro do pastor José Correia Filho, que foi meu pastor quando eu tinha doze anos. Depois que ele foi embora da cidade, as cartas dele eram a confirmação do meu ministério: ele endereçava escrevendo “À colega de ministério, Hideide...”; “à futura pastora, Hideide”. Foi num envelope de carta que me caiu a ficha de que eu, realmente, havia me tornado uma pastora. Quando vi esse título diante do meu nome, no envelope, eu me senti como quem recebe uma herança inesperada. Não era o orgulho do título, era a consideração bem funda desse sentimento de que a gente não merece essa coisa tão maravilhosa que nos acontece, mas que também não abre mão dela de jeito nenhum.
As cartas me falam de tudo isso. Também me falam dessa presença da ausência. A pessoa não está, mas a carta persiste. Somos cartas de Cristo, diz o apóstolo e a gente precisa ser lido, ser lida. Uma carta que ninguém lê é de uma inutilidade sem fim. Mas para ser lida a carta tem que ser aberta. Do mesmo jeito que o perfume, requer intimidade, despojamento e até o rasgar-se para revelar seu conteúdo. Existe um povo que não quer isso. Quer ser carta selada, entende-se superior e separado, não permite-se ser lido pelo mundo pelo receio de perder seu status de testamento. Mas aqueles e aquelas que andaram com o mestre sabem o que vai escrito no seu interior. Seu coração é um livro aberto, uma carta pronta para ser lida. E assim, as mãos do Mestre e as mãos dos pecadores e pecadoras continuam se tocando, pela eternidade.
Perfumes e cartas de Cristo
A parada que os romanos faziam durava o tempo de poucas horas. Depois o perfume se dissipava. As cartas cumprem seu propósito, depois ficam guardadas e, com muita sorte, se tornam documentos. Nós, seres humanos, temos tanto ímpeto de grandeza! Queremos ser pessoas bem-sucedidas, cujo nome fique na história. Mas a verdade é que somos que nem Davi: “servimos a Deus na nossa geração”. Pode ser que o perfume ainda fique por um pouco na roupa, pode ser que a carta seja lida de vez em vez, mas só podemos perfumar e informar quando estamos vivos e vivas, aqui e agora.
É por isso que devemos nos preocupar com nosso cheiro e nosso conteúdo. Eles precisam urgentemente servir a Cristo neste tempo e nessa geração. Somos conduzidos brevemente em triunfo, nessa parada humana, para que possamos ecoar na glória eterna, cujo tempo é medido diferente.

Talvez meu sermão mais importante não seja o que vai mais repercutir. No fim, nem aquele que atraia multidões. Talvez seja o sermão que cheira a vida, as palavras que destilem como chuvisco sobre a relva. Eu quero viver uma vida intensa, de ser perfume que espalhe cheiro de vida e carta que informe o caminho da salvação. Meu sermão mais importante é a minha vida, na sutileza dos cheiros e palavras do cotidiano, que as pessoas estão lendo silenciosamente ou aspirando sem barulho. Minha tarefa no pastoreio é ser a camisa do meu avô nas mãos da minha avó. Quando a dor da existência for muita, que o meu cheiro traga lembranças boas de um Deus presente. Minha tarefa no pastoreio é ser cheiro de pão de santa ceia na igreja pequena: inspirando saudades do Senhor. Minha tarefa é ser aquela carta de amor nas mãos do saudoso, que lhe lembra a presença da amada. Que na minha vida se encontrem as mãos dos pecadores, das pecadoras, com as mãos do meu Senhor. Eu anseio por uma igreja que não queira fazer seu nome na história, nem ser contada entre os poderosos deste tempo, nem que se conforme a esse século. Uma igreja que queira ser perfume, presente por mais efêmero. Uma igreja que queira ser carta e se deixe ser escrita pelo autor da vida. E no fim de tudo isso, ainda que servos e servas inúteis, considerados pelo Deus da vida como fiéis.

Cataguases, 02 de dezembro de 2016.
Catedral das Assembleias de Deus em Cataguases

O povo do coração aquecido

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