quarta-feira, 16 de novembro de 2016
O valor das cicatrizes (Gálatas 6.17)
Em muitos filmes que abordam a temática da liderança, particularmente aqueles que ocorrem em contexto de guerra, acontece quase sempre uma cena emblemática. O herói, o líder principal da tropa, em geral incompreendido durante boa parte da narrativa, tomado por ditador ou inacessível, de repente tira a camisa. É um momento singelo, uma hora de lanche, um instante depois de uma batalha. Mas é uma epifania. Assombrados, os liderados contemplam em silêncio as marcas, muitas delas indicando feridas abertas várias e várias vezes, deformando o corpo daquele homem. Eles compreendem então as razões de muitas decisões, os motivos de tantas posturas, os conteúdos de tantos silêncios.
É impossível ser uma pessoa vocacionada para um lugar de liderança sem trazer, ao mesmo tempo, as marcas desse processo. Cicatrizes são as expressões de que um caráter foi gerado, uma história foi contada. O apóstolo Paulo, em seu ministério, trazia em seu corpo essas marcas de açoites, prisões, fome, frio, sede, dificuldades. Sua entrega a Jesus Cristo trouxe cicatrizes que validavam seu apostolado. Do mesmo modo que nós.
Muita gente, porém, teme suas cicatrizes e as esconde. Acha que elas mostrarão algum tipo de deformidade, de feiura ou defeito que querem esconder. Querem parecer seres imaculados e perfeitos. Maquiam as cicatrizes e por isso perdem seu senso de humanidade. Porque as cicatrizes são uma forma que as pessoas nos enxergam.
Cicatrizes contam
Cicatrizes contam histórias. Quando eu era criança, pulei do alto de uma escada e dei um grito, esquecendo de guardar a língua para dentro da boca. O resultado foi a amputação da ponta dela, prontamente colocada no lugar por um hábil cirurgião. Contudo, há uma marquinha nela que me lembra daquele dia. Não sinto mais a dor, o corte não incomoda. Mas sempre que escovo os dentes e confiro se a boca está limpa, a marca me lembra do que aconteceu. E posso sorrir pela superação da aventura infantil.
Cicatrizes contam batalhas. Muitas cicatrizes, tanto físicas quanto emocionais e espirituais, são resultados de batalhas. Uma cicatriz de mama significa que a batalha contra o câncer foi ganha. Uma cicatriz no joelho lembra a corrida que foi ganha ou, mesmo quando perdida, vivenciada com alegria e garra. Uma cicatriz na alma lembra que o casamento perdido foi restaurado ou que uma nova história pôde ser escrita depois de uma batalha por uma vida melhor.
Cicatrizes contam superação. Uma gravidez perdida, um emprego desejado não concretizado, um irmão que morreu. Um acidente que gerou imobilidade, que se tornou renovo e reaprendizado. Cicatrizes mostram que coisas muito sérias aconteceram, mas que não geraram apenas perdas ou mortes. Que somos seres capazes de nos reinventar, de nos refazer a partir da graça divina que não nos abandona.
Cicatrizes contam feridas. Todas as coisas que uma cicatriz conta começam com uma ferida que foi aberta. Que sangrou e doeu. Que causou constrangimento, angústia e medo. Que nos tornou humanos. Quando vivenciei dores e dificuldades na minha vida familiar, eu percebi que muitas vezes fui movida por arrogância e orgulho. Doeu sentir que eu poderia perder. Doeu reconhecer equívocos e pecados. Doeu muito ter de oferecer e pedir perdão. Mas o profeta Isaías disse, certa vez, do problema das feridas malcuradas. Que elas escondem podridão, pus e morte. Que precisam ser espremidas, tratadas e curadas. Cicatrizes significam que a doença e a enfermidade não venceram. A marca que fica é sempre a marca da vitória, nunca da derrota e jamais da deformação, mas de um encontro com Deus. É como a perna manca de Jacó em Peniel. Mancando talvez, mas com certeza vencendo!
Jesus e nossas cicatrizes
Jesus, ao morrer e ressurgir, também subiu ao céu levando suas cicatrizes. Ele poderia ter regenerado seu corpo e alcançado a perfeição, mas ele leva as marcas que sinalizam sua vitória sobre a morte. É preciso coragem para encarar nossas feridas e dores e transformá-las em cicatrizes. Gente sarada não é gente perfeita, mas é gente sadia, sã. Uma cicatriz mostra sempre um “ex”: um ex-ferido, um ex-dependente, um ex-enfermo. Agora, algo novo surge e a cicatriz é a prova da vitória.
Não se furte ao exemplo de Jesus, que encarou suas marcas e as apontou a Tomé como possibilidade real de fé e superação. Jesus não prometeu que sairíamos incólumes das batalhas. Mas ele prometeu bálsamo, remédio, tratamento e cura. Ele não prometeu que estaríamos fora de alcance das batalhas, mas assegurou que é nosso general e não deixará que fiquemos no campo de guerra sem provisão, remédio e cura. Ainda que machucados, machucadas, somos capazes de sair vencedores e vencedoras. As cicatrizes são prova disso. E ao olhar para elas como sinal da regeneração e da graça divina, seremos capazes de ser pessoas efetivas em nosso ministério. Afinal, só assim seremos capazes de consolar com a mesma consolação que recebemos; de transmitir o mesmo amor que recebemos; de oferecer a mesma palavra da fé que nos foi ministrada; de ajudar as pessoas a recomeçar, reconstruir e refazer como nós também recebemos ajuda.
Tenha coragem de encarar suas feridas e transformá-las em cicatrizes. Nesse ponto de vida, você será capaz, como Paulo, de dizer: “Ninguém me moleste, ninguém me fira de novo, ninguém tire a minha paz. As marcas que eu trago, as marcas de Jesus, são feridas curadas!”
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