É sempre interessante a oposição que os salmos fazem entre o
descansar em Deus (aparentemente como uma disposição do interior da pessoa) e a
situação externa que é aflitiva. O salmo 62 é um bom exemplo. Todo o texto se
foca na tensão entre descanso e
opressão. O salmista busca refúgio em Deus contra os inimigos externos que o
acusam. A situação parece estar relacionada à cobrança de dívidas que oprimem o
orante (v.10). Sua situação é delicada – ele parece estar perto de um colapso,
ou empobrecido... A metáfora que usa para si mesmo é a do muro caído, da cerca
vacilante (será que sua herança está em risco?).
Não sabemos exatamente do que se trata, mas é algo muito
grave. Ao invés de se desesperar, porém, ele afirma estar descansando em Deus.
É difícil descansar
Somos resultado de uma cultura que afirma que o tempo ocioso
é desperdício. Pessoas que trabalham 10, 15 horas ou mais por dia são
valorizadas. Nossas férias são igualmente ocupadas com muitas passagens por
lugares diferentes. Vemos pessoas como os monges ou freiras que se isolam para
servir a Deus por meio da oração e da meditação como seres extravagantes, cuja
atuação não serve de muita coisa no mundo prático. Será?
Não deve ser coincidência que o tema do descanso apareça tanto
nessa época em que proliferam doenças relacionadas com o estresse. O que é a
depressão, a síndrome do pânico, a insônia e outros males na vida de muita
gente senão resultados de uma aceleração pecaminosa da vida? Para muita gente,
apenas desacelerar já faria com que muitas doenças desaparecessem. Mas nos
sentimos em grande culpa quando a enfermidade nos faz ficar uns dias de cama...
Descansar em meio aos problemas, então, parece impossível.
Temos de admitir o quanto descansar é difícil. Achamos que
precisamos fazer algo o tempo todo. E descansar não é apenas a ausência das
tarefas. É possível estar assistindo a um filme na TV ou lendo um livro de
piadas e ainda assim não estar descansando. A mente está sempre pensando na
próxima coisa a ser feita. A ansiedade domina. O corpo continua tenso e rígido.
Não dá para descansar assim.
Para descansar, temos
de admitir que não estamos no controle de tudo (v.1-2)
O salmista diz que descansa em Deus, porque a salvação
(representadas pelas imagens da rocha e da torre) vem apenas do Senhor. Gostamos
de ter o controle das coisas em nossa vida. Checamos nosso status nas redes
sociais, nosso extrato no banco e nossas contas sobre a mesa, às vezes várias
vezes ao dia. Fazemos exames médicos tentando prever as doenças. Procuramos
antecipar nossas reservas para uma aposentadoria segura. Mas se algo diverso
disso acontece, nos sentimos como seres desprotegidos. Nossa vida vira de ponta
a cabeça. Por quê? O controle da nossa vida é uma ilusão que nos é vendida a
todo o tempo. Nossa rotina é prova disso. Achamos que fazer as mesmas coisas
vai nos dar algum senso de saber o dia do amanhã. Mentimos a nós e nos
enganamos, deixando de viver a vida do modo adequado, com medo de perder alguma
coisa.
Ao reconhecer que a salvação vem de Deus, o salmista resgata
uma ideia central: nosso Deus é poderoso para controlar as condições de nossa
vida! E seu desejo amoroso de nos acolher e nos guardar sob suas asas precisa
nos dar a segurança necessária para descansar, quando as tempestades estão
fortemente arraigadas ao nosso derredor. No livro “Espiritualidade
emocionalmente saudável", Peter Scazzero fala da necessidade de
desacelerar para ouvir a Deus. Ele assevera veemente que nossas vidas podem
consistir uma fraude, sempre na disposição de agradar aos outros, de fazer o
que é melhor ou preencher modelos de perfeição, mas escondendo as dores mais
profundas da nossa alma. Descansar em Deus é perder o controle da nossa vida
para que Deus, que nos ama e nos acolhe profundamente, possa nos mostrar o que
Ele anseia e espera de nós. Esse tipo de descanso, orienta ele, deve ser uma
busca diária. A cada dia temos de desacelerar nossas emoções, nossa agenda,
nosso interior para ouvir a Deus.
Descansar e confiar
(v. 5-8)
No ano passado, atravessei um trecho de mar a bordo de um
barquinho a motor pela primeira vez. A sensação de estar naquela minúscula
embarcação diante de um mar tão grande era terrível. Chuviscos salgados por
toda a parte (pois o dia estava nublado e chuvoso) diminuíam minha capacidade de
enxergar, porque os óculos ficaram completamente molhados. Meu cunhado estava
na direção do barco. Sua voz constante, dizendo que tudo estava bem, era a
única garantia para mim. Acho que minha vergonha não foi maior porque havia
outras pessoas tão medrosas quanto eu naquele barco! Finalmente chegamos. Não
posso descrever a alegria de pisar na areia. Meus joelhos estavam meio bambos.
Estava a salvo.
A vida não é muito diferente desse barco, não é? Estamos
balançando ao sabor das crises econômicas, das doenças familiares, dos
processos de mudança. Mas em meio a essa travessia, pode acontecer, como houve
conosco, que possamos vislumbrar os golfinhos nadando na enseada! Sim, aprendi
que bem no meio de muitas coisas difíceis, há certos oásis emocionais que Deus
nos prepara. Se ao menos pudermos parar de bater os braços e pernas e nos
quedar nos braços do sumo Salva-vidas, poderemos ver esses vislumbres de vida.
Para o salmista, a esperança, a rocha, a torre alta, a
salvação e a honra estão em Deus. Que confiança tremenda quando percebemos que
ele é o capitão do nosso barquinho. Em Cristo, ele navegou essas águas antes e
pode nos levar em segurança!
Derramar o coração
para encontrar refúgio (v.8)
Tenho aprendido, então, a duras penas, que descansar é mais
um estado de alma do que uma postura física. Estar deitado numa rede ou à
beira-mar, sem que o coração esteja ali, é só perder tempo. É interessante que
a Bíblia fale tantas vezes de Deus como refúgio. Quantas coisas grandiosas
aconteceram a pessoas que estavam escondidas de alguma ameaça! Foi por ser
perseguido que Lutero conseguiu fazer sua tradução da Bíblia. Talvez se não
houvesse um inimigo exterior, ele não conseguiria o isolamento suficiente para
seus estudos! Talvez por isso boa parte dos escritores cristãos passe por
momentos difíceis, turbulentos e precisem parar é que as melhores obras foram
escritas!
Quem sabe o que pode acontecer se você e eu encontrarmos um
refúgio, um lugar afastado dos barulhos ao nosso redor, um lugar quieto e
silencioso tanto ao redor quanto dentro de nós mesmos, para ouvir a Deus? Não
poderemos jamais descansar enquanto nosso coração estiver cheio, seja lá do que
for. É preciso “derramar o coração”, esvaziá-lo de tantas coisas inúteis, para
que o espaço seja preenchido por este refrigério divino. Há um lugar seguro em
Deus, no qual podemos colocar todas as nossas defesas abaixo. Até mesmo um
soldado, para dormir melhor, precisa tirar sua armadura. Se ele está no forte,
se o general está no comando e lhe diz que ele está seguro, por que esse
soldado não pode dormir em paz?
Respire fundo, tire um tempo do dia para estar em quietude
diante de Deus. Descanse nele, deixando que ele trate essa ansiedade que impede
sua vida de florescer. Ele descansou – por que não nós? Deveríamos fazer uma
lista de quantas vezes o tema do descanso aparece na Bíblia e veríamos que
descansar é tão ou mais importante do que trabalhar – mudemos nossa percepção.
A pessoa descansada é diferente da preguiçosa. Ela consegue estabelecer
prioridades, consegue diminuir o dano que pode vir dos ataques externos, possui
equilíbrio e saúde emocional para lidar com o cotidiano e sabe, acima de tudo,
que Deus é um cuidador amoroso que nada lhe deixará faltar. Ao fim do dia, pode
dizer: “Em paz me deito e durmo bem”. Descansar em Deus é
a tarefa para hoje!
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