O bispo João Carlos me explicou,
recentemente, que a pregação do culto de consagração de uma pessoa ao
episcopado é muito esperado pelas audiências. As pessoas esperam que o bispo ou
bispa compartilhe com eles sua visão para a Região e a Igreja. Então, imagino a
expectativa sobre o que eu vou dizer hoje. Ainda espero pelo dia em que vou pregar
um sermão para comover multidões, como aqueles que a gente lê nos livros de
história. Não sei se será hoje. Mas eu tenho certeza e confiança de que terei
cinco anos para compartilhar o que eu imagino, penso ou sonho acerca de projetos
de expansão, acerca de avanço missionário, acerca de estruturas e também de
missão e outras coisas eclesiásticas.
Mas é que hoje eu queria mesmo
era falar de uma coisa muito importante para mim. Eu quero falar de Jesus. E
quando eu falo dele mesmo, dele purinho, dele apenas, não tem jeito: meu lado
meio poético emerge. Eu sou encantada por Jesus e pelo que Ele fez na minha
vida. Pelo modo como Ele dá sentido à minha vida e preenche meu coração de
alegria e esperança. Então eu quero falar, usando as metáforas de Paulo, sobre
Jesus e eu a partir de cheiros e de cartas. É um sermão sobre como eu imagino
que deva ser a nossa vida interior com Jesus, aquela mesma que vai sustentar a
igreja, o ministério, a estrutura, a missão e o discipulado. Aquela que é mesmo
como que o esqueleto desse corpo vivo, Igreja.
Dizem os entendidos que Paulo, quando escreveu este texto, tinha em mente o desfile romano após uma guerra. O cheiro da vitória emanava dos incensos acesos e das pétalas de flores que o povo lançava sobre os soldados enquanto estes passavam, cansados, exaustos e vencedores, pelas ruas da cidade, apresentando seus troféus da vitória. Assim, Deus nos conduz em triunfo, como soldados que retornam, espalhando por toda a parte o perfume do conhecimento dele.
Sobre perfumes
Eu venho de uma igreja pequena.
Quando eu era criança, a gente não participava da ceia do Senhor. Era coisa de
gente grande, entendida dos mistérios do além. Gente que sabia o que é o
sacramento. Coisa séria, que a gente tinha de fazer cara de tristeza para
participar. Chamava-se a isso reverência. E é, porque a contrição faz parte da
nossa espiritualidade. Mas a alegria também.
Eu chegava à igreja nos dias de
ceia com a certeza do diferente. A igreja inteira cheirava a pão e a suco de
uva. Era impossível ficar ali sem aquela presença. Era uma coisa tão
significativa que eu acho padaria coisa sagrada. Não consigo comer pão sem a
sensação estranha de que, a qualquer modo, vou ouvir as palavras: “Este é o meu
corpo...” ou sem visualizar, ainda mais quando o pão está quentinho, Jesus
partindo, dando graças serenamente e me convidando pra comer. Era um cheiro
que, na minha infância, me convidava a persistir para chegar a hora em que eu
ia poder comer também, como gente grande, na mesa do mestre que nos mandou ser
como crianças.
Outra coisa que cheiros me
lembram é relacionamento. Existe gente exagerada, cujo perfume se espalha e
chega antes dela. Gente assim geralmente é alegre e extrovertida, não tem medo
de ser feliz. Mas existe gente discreta. Gente que, para sentir o perfume
delas, requer também que se ouça o coração. Só o abraço revela o perfume e pra
aproveitar a gente precisa prolongar o abraço. Pra mim, Jesus é as duas coisas.
Já houve dias na minha vida em que Ele chegou antes, espalhafatoso, abundante,
impregnando as coisas todas da presença dele. Geralmente ele faz isso nos
momentos em que eu esqueço de me lembrar. Lembrar sua misericórdia, sua
presença, seu modo de preencher minha vida.
Mas muitas vezes, Jesus foi
discreto, me convidando para a intimidade com ele. Era preciso aceitar a
acolhida do seu abraço para sentir o cheiro da sua presença. Nessas horas, era
conforto, era a parada necessária, o recomeço. Nesse perfume da intimidade
Jesus curou minha alma das mágoas, das dores e dos pecados – um tipo de cheiro que
a gente só pode usufruir se tiver a coragem de chegar muito perto de Jesus.
Tanta gente tem medo disso ainda! Tanta gente anda comprando perfume, que nem a
igreja de Laodicéia, para esconder os maus cheiros de sua alma, pelo medo de
ser banhado pelo Espírito, de ser lavado pela água viva, de ser envolvido pela
fragrância do conhecimento de Deus, que também é conhecimento da gente... Mas
eu quero lhe garantir que foi esse
cheiro de pai, de irmão mais velho, de mestre da minha alma que me permitiu
resistir a tanta coisa. Esse cheiro apenas permite à gente suspirar, respirar
fundo, pausado, vivendo. Só esse cheiro de perto, inspirado assim, vira “ruah”,
sopro de Deus, na vida da gente.
Não dá para falar de sonhos, de
projetos, de ideias, sem esse cheiro de vida dentro de nós. Somos seres
apressados, respirando em ritmo de corrida o
tempo todo. Achamos que sabemos o que é a vida. Queremos ditar coisas
para o Deus todo poderoso. Mas, há um segredo entre nós e Deus, um segredo que
ele só revela aos que entram em aliança, em relacionamento com ele. Um cheiro
de vida que só bem de perto, que nem João no dia da Ceia, só reclinando no
peito do mestre a gente pode sentir, respirar e viver. É por isso que pra mim a
ceia tem mesmo a ver com o que Rubem Alves, falava, da saudade. O cheiro de
Jesus para mim é como quando meu avô morreu e um dia eu entrei no quarto da minha
avó e ela estava sentada na cama, com a camisa dele entre as mãos, pegada ao
rosto, de olhos fechados, serena, cheirando... Aquilo sim, era uma verdadeira
oração! Assim é o perfume de Cristo, que a gente cheira paradinho enquanto a
vida corre. E depois vai com o cheiro na alma viver o dia, ao qual basta seu
mal.
Sobre cartas
Hoje, a gente perdeu a graça de
esperar uma carta pelo correio. Quando o carteiro deixa uma carta, existe nela
também perfume, toque. Graciliano Ramos escreveu para a esposa dele, distante,
alguma coisa sobre como era prazeiroso segurar uma carta que ela escreveu,
porque era um jeito de dar-se as mãos. Naquele papel, a mão de quem escreveu e
a mão de quem está lendo se unem. Nós somos cartas vivas, diz o apóstolo. É na
vida da igreja hoje que a mão de quem se sente perdido, sozinho, carente de
salvação encontra a mão do Senhor dos Senhores que andou e viveu nesta terra, e
segue vivo em nós.
Eu me lembro do pastor José
Correia Filho, que foi meu pastor quando eu tinha doze anos. Depois que ele foi
embora da cidade, as cartas dele eram a confirmação do meu ministério: ele
endereçava escrevendo “À colega de ministério, Hideide...”; “à futura pastora,
Hideide”. Foi num envelope de carta que me caiu a ficha de que eu, realmente,
havia me tornado uma pastora. Quando vi esse título diante do meu nome, no
envelope, eu me senti como quem recebe uma herança inesperada. Não era o
orgulho do título, era a consideração bem funda desse sentimento de que a gente
não merece essa coisa tão maravilhosa que nos acontece, mas que também não abre
mão dela de jeito nenhum.
As cartas me falam de tudo isso.
Também me falam dessa presença da ausência. A pessoa não está, mas a carta
persiste. Somos cartas de Cristo, diz o apóstolo e a gente precisa ser lido,
ser lida. Uma carta que ninguém lê é de uma inutilidade sem fim. Mas para ser
lida a carta tem que ser aberta. Do mesmo jeito que o perfume, requer
intimidade, despojamento e até o rasgar-se para revelar seu conteúdo. Existe um
povo que não quer isso. Quer ser carta selada, entende-se superior e separado,
não permite-se ser lido pelo mundo pelo receio de perder seu status de
testamento. Mas aqueles e aquelas que andaram com o mestre sabem o que vai
escrito no seu interior. Seu coração é um livro aberto, uma carta pronta para
ser lida. E assim, as mãos do Mestre e as mãos dos pecadores e pecadoras
continuam se tocando, pela eternidade.
Perfumes e cartas de Cristo
A parada que os romanos faziam
durava o tempo de poucas horas. Depois o perfume se dissipava. As cartas
cumprem seu propósito, depois ficam guardadas e, com muita sorte, se tornam
documentos. Nós, seres humanos, temos tanto ímpeto de grandeza! Queremos ser
pessoas bem-sucedidas, cujo nome fique na história. Mas a verdade é que somos
que nem Davi: “servimos a Deus na nossa geração”. Pode ser que o perfume ainda
fique por um pouco na roupa, pode ser que a carta seja lida de vez em vez, mas
só podemos perfumar e informar quando estamos vivos e vivas, aqui e agora.
É por isso que devemos nos
preocupar com nosso cheiro e nosso conteúdo. Eles precisam urgentemente servir
a Cristo neste tempo e nessa geração. Somos conduzidos brevemente em triunfo,
nessa parada humana, para que possamos ecoar na glória eterna, cujo tempo é
medido diferente.
Talvez meu sermão mais importante
não seja o que vai mais repercutir. No fim, nem aquele que atraia multidões.
Talvez seja o sermão que cheira a vida, as palavras que destilem como chuvisco
sobre a relva. Eu quero viver uma vida intensa, de ser perfume que espalhe
cheiro de vida e carta que informe o caminho da salvação. Meu sermão mais
importante é a minha vida, na sutileza dos cheiros e palavras do cotidiano, que
as pessoas estão lendo silenciosamente ou aspirando sem barulho. Minha tarefa
no pastoreio é ser a camisa do meu avô nas mãos da minha avó. Quando a dor da
existência for muita, que o meu cheiro traga lembranças boas de um Deus
presente. Minha tarefa no pastoreio é ser cheiro de pão de santa ceia na igreja
pequena: inspirando saudades do Senhor. Minha tarefa é ser aquela carta de amor
nas mãos do saudoso, que lhe lembra a presença da amada. Que na minha vida se
encontrem as mãos dos pecadores, das pecadoras, com as mãos do meu Senhor. Eu
anseio por uma igreja que não queira fazer seu nome na história, nem ser
contada entre os poderosos deste tempo, nem que se conforme a esse século. Uma
igreja que queira ser perfume, presente por mais efêmero. Uma igreja que queira
ser carta e se deixe ser escrita pelo autor da vida. E no fim de tudo isso,
ainda que servos e servas inúteis, considerados pelo Deus da vida como fiéis.
Cataguases, 02 de dezembro de 2016.
Catedral das Assembleias de Deus em Cataguases
Deus seja louvado por sua vida!
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