segunda-feira, 24 de março de 2008

Se eu quiser falar com Deus (uma resenha para os alunos do curso de Cultura Religiosa)

Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil, é um clássico da música popular brasileira, escrita em 1980, segundo o próprio autor, a pedido de Roberto Carlos, que terminou por recusar a obra por não compartilhar da mesma idéia de Gil sobre Deus. O poema possui 36 versos, nos quais o autor enumera uma série de ritos ou atitudes que deve tomar para conseguir acesso a Deus. Esses ritos ou atitudes são apresentados em caráter de exigência, dado pela expressão “Tenho que”, que implica necessidade, diretivas, postulados (e não sugestões ou possibilidades). Sinalizam algo que deve realmente ser feito, sob o risco de não conseguir falar com Deus. Por outro lado, Gil não apresenta a origem dessa exigência (Vem dele mesmo? Vem de Deus? Vem de uma religião estabelecida?), deixando-a subentendida ou a critério do leitor da letra ou ouvinte da melodia.
Do mesmo modo, ele não aponta a resposta divina em nenhum momento. Todos os ritos pontuados são para que ele possa falar com Deus, dando a idéia de obtenção de acesso, não necessariamente de favores ou um retorno divino. Também não apresenta o conteúdo de sua fala (um pedido, um agradecimento, uma intercessão), senão a necessidade mesma de falar: uma fala que sinaliza acesso, estar diante de, encontrar-se com. A fé na existência divina está posta – ele não a questiona. Ela está dada de si mesma na forma como a música é construída. Mas os ritos dos quais se utiliza não podem ser diretamente encontrados numa dada religião, nem parecem diretamente vinculados a um culto religioso. São mais atitudes de postura em relação a vida, o que leva alguns críticos a considerarem que se trata de um texto filosófico, não religioso, no sentido estrito do termo.
“Ficar a sós, apagar a luz e calar a voz” indicam uma negação de si mesmo. Ele, como cantor, frequentemente está diante de platéias, sob a luz de holofotes e à espera de que sua voz seja ouvida. Para falar com Deus, a contradição é estar em silêncio e fora do foco principal. “Encontrar a paz, folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios” evocam a imagem do homem de negócios, preocupado e ansioso, sufocado pelos compromissos. Essa idéia é reforçada pelos versos seguintes: “esquecer a data, perder a conta, ter mãos vazias, alma e corpo nus”. Diante do consumismo dessa sociedade capitalista, seria necessário abrir mão dos valores que determinam o poder e a expressão social: ter a agenda lotada, a conta bancária polpuda, ostentar jóias nas mãos e roupas de marca no corpo.
Enfrentar o sofrimento parece ser a terceira categoria de deveres e ritos explorados pelo autor: “aceitar a dor, comer o pão amassado, virar um cão”. O sofrimento é encarado como uma forma de aproximação de Deus em diversas religiões, incluindo o Cristianismo em algumas de suas manifestações. Especialmente na Idade Média, o sofrimento era uma forma de purificação espiritual. O castigo do corpo era a superação do espírito sobre a matéria. Entretanto, creio que não se trata aqui do sofrimento neste sentido penitencial, senão também que é descer do seu próprio pedestal, colocar-se numa posição mais realista. Isso pode ser depreendido dos versos em que ele fala sobre lamber o chão dos castelos e palácios de seus próprios sonhos – isto é, reconhecer que seus projetos pessoais são ilusórios. O ser humano tende à auto-glorificação, mas achar-se “triste”, “medonho” e apesar do “mal tamanho” em sua existência, encontrar motivos de alegria é o caminho apontado pelo autor para falar com Deus. Uma visão cristã desta letra poderia até traçar paralelos entre essa idéia e a doutrina cristã do arrependimento como auto-conhecimento diante de Deus, mas não parece ser a opção do autor, desvinculado que está de uma religiosidade específica na totalidade da letra.
Gilberto Gil, na estrofe final, apresenta uma definição poética da fé sem o declarar abertamente. Ele chama o falar com Deus de “aventura”, “subir ao céu sem cordas” – uma memória do filósofo Norën Kierkegaard, que define “a fé como salto no escuro”? Difícil afirmar, mas que parece, parece! “Dar as costas” evoca a imagem do abandono do mundo, outra idéia bastante presente no Cristianismo. “Caminhar decidido pela estrada” também é uma forma de ilustrar uma opção consciente, se bem que não no sentido de conversão, porque aqui o autor deixa transparecer uma idéia própria de Deus, uma idéia que, de antemão, ele mesmo reconhece poder “dar em nada do que pensava encontrar”. Ele deixa aqui uma porta aberta e talvez a única idéia da resposta divina presente na letra: ‘Eu posso falar com Deus e pode ser que o que eu receba de volta não seja nada do que eu espero’. Assim, a letra encerra com um tom de mistério, próprio também da religiosidade humana: reconhecer que o divino é maior do que nossa imaginação ou expectativa.
Esta letra, por fazer parte do repertório popular e vinda de um autor popular, não tem, obviamente, o valor litúrgico ou sacro dos hinos e cânticos de uma determinada religião. É mais o encontro com Deus no cotidiano da existência e, nesse sentido, é a visão particular de um indivíduo, que pode ser aceita ou rechaçada por quem o ouvir. Mas não deixa de ser interessante, no aspecto poético, ético e até teológico, se somos capazes de ouvir, refletir e somente depois somar a experiência dele à nossa para propor alguma nova conclusão. Afinal de contas, pode ser que, ao pensar e repensar, também cheguemos ao final de um caminho no qual encontremos algo diferente do que pensávamos a princípio. Essa é a diferença da abordagem desta letra em termos de “cultura religiosa” e a leitura a partir da nossa religião propriamente dita.

6 comentários:

  1. Hideíde,
    graça, paz e bem!

    Este texto é muito profundo e oportuno. Que Deus continue a abençoá-la.

    Felicidades!

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  2. Uma resenha linda para uma música linda. Parabéns!

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  3. Pastora sua resenha vai me ajudar muito,pois vou fazer um trabalho com essa música. Se possivél entre em contato comigo (prometeu@yahoo.com)tenho algumas duvidas para tirar.

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  4. Não acho essa a melhor maneira de interpretar essa música apesar de existir trechos dessa crítica coerente, há outros que só perpetuam a visão idealista de reprodução religiosa!

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  5. Belíssima resenha, estou a esta hora escutando a música a fio. Sua opinião me ajudou ao que estou tentando aprender em assimilar o que o autor pensou na inspiração e ao que eu penso quando escuto tal canção, não posso negar que ela me remete ao sentido que Deus está dentro de cada um de nós, por mais que tentemos, algumas vezes, nos distanciar. Obrigado.

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  6. A interpretação feita é a mesma que tive, aos dezessete anos, quando ouvi a música pela primeira vez. Estava em depressão e rezava muito, querendo de Deus respostas que não vinha. Ou, pelo menos, do jeito que eu esperava. A ideia que tenho, atualmente, é a mesma: existe um Deus, cada qual tem seu processo de chegar até Ele, e pode ser que não consiga o que espera. Talvez porque não seja aquilo que se pede o que Ele entenda adequado.

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