Lucas 15.25-32
Ora, o filho mais velho estivera no campo; e, quando voltava, ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um dos criados e perguntou-lhe que era aquilo.
E ele informou: Veio teu irmão, e teu pai mandou matar o novilho cevado, porque o recuperou com saúde. Ele se indignou e não queria entrar, saindo, porém, o pai procurava conciliá-lo.
Mas ele respondeu a seu pai: Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito sequer para alegrar-me com os meus amigos; vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho cevado. Então, lhe respondeu o pai: Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu. Entretanto, era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado.
Um resgate das palavras
Em português, quando queremos agradecer a alguém, dizemos: Muito obrigado, muito obrigada. Esta expressão é uma redução de uma frase maior: Sinto-me em obrigação com você pelo que fez. Por isso, a pessoa que fez o favor responde: Por nada. Isto é, não se sinta em obrigação para comigo. O que eu fiz não foi para isso, foi por nada, de bom grado, livremente.
Sem perceber, esta expressão cotidiana nos ensina um valor eterno. Quando alguém nos faz alguma coisa, esta pessoa nos coloca, sim, em obrigação para com ela. Esta obrigação se reflete num espírito de gratidão e, na eventualidade daquela pessoa precisar de nós, deve se materializar numa recíproca de generosidade. Se fizemos algo para alguém, por outro lado, e esta pessoa se sente em obrigação para conosco, tornamo-nos, de algum modo, responsáveis por ela. Por isso, apesar de antiquada, vale lembrar a máxima do Pequeno Princípe: Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas...
No hebraico do Antigo Testamento, não existe uma palavra específica que signifique agradecer. Quando se refere a Deus em relação a uma bênção recebida, particularmente no livro de Salmos, temos várias expressões que indicam o que queremos dizer com gratidão ou “dar graças”, mas essa é a nossa tradução. Quando o homem bíblico quer agradecer, ele louva (cf. Dt 9.10; 24.13; 2Sm 14.22; Jó 31.19s.; Ne 11.11).
“Por outro lado, o verbo que traduções recentes traduziam por ‘dar graças’ (forma causativa hodah) significa, na realidade, louvar, apreciar, especialmente ‘reconhecer’ (comparar justamente com ‘reconhecimento’’), a saber: experimentar uma verdade abstrata já conhecida e ‘reconhecer’ toda a sua riqueza. Essa significação é demonstrada, e também ilustrada, pelos verbos que os salmistas põem em paralelo com hodah, isto é, sapper, ‘contar, enumerar, enuncia’ (Sl 9.2; 78.3-6); haggid, ‘narrar’ (30.10; 92.2s.), hallel, ‘louvar’ (33.18; 44.9; 109.30; 111.1); zammer, “cantar” (18.50; 30.5,13, etc., cf. MONLOBOU, 1996).
Portanto, para o povo de Deus no Antigo Testamento, agradecer tem a ver com louvor, apreciação, reconhecimento e tudo isso com uma postura de alegria, com a disposição para o testemunho e para a cantiga. É a partilha da satisfação de ter sido agraciado com algo que se necessitava muito ou que se desejava.
Pesquisando mais sobre o sentido das palavras, eu me deparei com o idioma chinês e a riqueza dos sentidos da palavra agradecer. Num site da internet, é explicado que “a gratidão em chinês, repete o ideograma duas vezes, enfatizando o seu sentido”. Isso nos faz lembrar que, em Israel, quando se queria exaltar alguma coisa, se dizia a palavra três vezes, como “Santo, santo, santo”. O próprio Jesus, em João, para enfatizar seu ensino, também dizia: “Em verdade, em verdade...”. Portanto, isso significa que gratidão é uma coisa muito importante para os chineses. Podemos aprender com isso, já de cara, mas também algo mais...
“A gratidão é composta pelo radical (yan), que representa palavra, fala, (shen), que significa corpo e, finalmente, por shi - flecha. Neste caso, a flecha representa a curvatura, a reverência do corpo, que se expressa em palavras. Os chineses antigos agradeciam ao Imperador e cumprimentavam a Deus (simbolizado para eles como o Céu e a Terra), com o corpo completamente encurvado, prostrado, colocando a testa no chão para expressar a magnitude de sua gratidão. Esse gesto não se faz mais atualmente, mas está expresso pelo seu ideograma quando dizemos: (xie xie)"
Eu fiquei extremamente impactada pelo comentário do autor da pesquisa, que disse: “É natural que o Oriente una a reverência - sua forma predileta de respeito e veneração por uma pessoa - à expressão de gratidão: afinal, pela reverência, literalmente abaixamos nossa cabeça, situando-a à altura do coração...” (Você pode ver a explicação completa em http://www.hottopos.com/spcol/1chiafff.htm)
Não é lindo isso? A gratidão, para os chineses, une a mente e o coração. É um reconhecimento intelectual, mas também afetivo. Envolve respeito e também o reconhecimento, afeta os sentidos e faz o corpo se mover em reverência...
Gratidão é reconhecimento e relacionamento
A parábola do filho pródigo nos mostra, na experiência do irmão mais velho, que falta faz a experiência da gratidão. No fundo, é um espírito de egoísmo que se manifesta na forma como ele se dirige ao pai. Vamos observar, em sua postura, atitudes que devemos evitar para não nos tornarmos pessoas duras e frias, que não vivem um relacionamento de afetividade para com Deus e com as pessoas.
a) Ele não fica feliz ao ver o retorno do irmão
Existem muitas pessoas, mesmo cristãs, que não se alegram com a mudança na vida das outras. Elas se ressentem quando veem outras pessoas sendo bem-sucedidas, ou amadas, ou alcançando seus sonhos. Essas pessoas se esquecem de que Deus as ama tanto quanto ama as demais. Elas sempre acham que as outras pessoas não deveriam ser tão abençoadas, já que erraram tanto, que fizeram besteiras ou que são “jovens” demais para determinadas posturas ou espaços.
b) Ele reclama da forma como é tratado pelo pai
Para muita gente, Deus tem que agir do jeito que achamos que ele tem que agir. Prova disso são as orações que determinam; as posturas que exigem. Gente que jejua e diz: Agora, sim, Deus vai me abençoar porque eu fiz isso. Essas pessoas não entenderam o espírito do Evangelho: Nós amamos porque ele nos amou primeiro! Nós somos abençoados porque ele nos ama e somente por isso... O pai não é injusto, mas ele tem seus próprios critérios e é parte do processo de gratidão entender que se ele fosse nos tratar como merecemos, nenhum de nós poderia, jamais, entrar na festa do reino!
c) Ele se mantém do lado de fora
Muita gente age como este filho, de modo mimado e egoísta. Gente que só ocupa seu lugar se for adulado... se tiver atenção especial. O pai tem que sair da festa para vir falar com ele, que fica de cara amarrada... gente que se recusa a participar da alegria, que fica reclamando pelos corredores e na porta da igreja, por trás das paredes. Gente que vive emburrada, de braços cruzados e cara feia. Porque parte do sentimento de imerecimento, a gratidão vem revestida de uma alegria livre. Deus nos ama, apesar de nós! Isto é uma liberdade que o filho mais velho não entendeu. Ele quer a bênção só pra ele e só obedeceu ao pai porque esperava ser recompensado por isso. Ele não ama o pai tanto quanto o filho mais novo. Ele só quer se aproveitar, usando o argumento: Eu sempre te agradei... sempre fiz tudo o que você quis... Mas o pai só queria ouvir: Eu te amo... Incapaz de amar, o filho mais velho fica do lado de fora da vida, da festa, da alegria, porque não reconhece a generosidade do pai, que disse: Tudo o que é meu, é seu...
d) Ele acha que é dono de tudo, então não precisa ser grato
O filho mais novo esperdiçou sua parte da herança. Então, agora, o novilho que ele está comendo é, pela lei, do filho mais velho. Daí a razão de sua ira. Ele não quer partilhar o que acha que é dele por direito. Mas ele esquece que ambos são herdeiros. Não fizeram por merecer a riqueza que herdam. Não trabalharam por ela. Nenhum dos dois se esforçou para aquele patamar. O trabalho foi do pai. Ele é que juntou tudo ao longo dos anos. Quando a gente pensa a vida em termos de “eu tenho direito a isso”, eu tenho direito àquilo, vem a ingratidão, a falta de perdão. A gente não perdoa nem partilha porque se acha melhor do que a pessoa que foi ofendida. A gente nunca faria aquilo que ela fez, nem tomaria a atitude que ela tomou. Pode até ser verdade que o filho mais velho nunca iria embora, como o mais novo. Que nunca se prostituiria como ele, nem gastaria tudo. Mas isso não o isenta de outros pecados: arrogância, dureza de coração, ódio, legalismo... que pecado é maior? A gratidão a Deus por seu amor é que nos permite ambos sermos purificados, tanto o que está em casa quanto o que volta. Porque gratidão, vamos relembrar como os hebreus, é reconhecimento da generosidade divina.
Conclusão
Este momento de ação de graças nos convida a entrar numa festa. Para isso, temos de tomar ao menos uma atitude: reconhecer que erramos, que não somos dignos de ser filhos e achegarmos com humildade diante do Pai. Ou reconhecer que nossas motivações espirituais podem não ser verdadeiras, autênticas e nos arrepender dessa religiosidade aparente. De qualquer modo, para ambas as posturas, que significam, em última instância, gratidão pelo que Deus faz por nós, há um só e o mesmo resultado: poder entrar na festa, celebrar, alegrar-se e agradecer.
Quero convidar você a assumir hoje as ações de graças no sentido brasileiro, hebraico e chinês. Que você se sinta em obrigação e, portanto, ligado a Deus por causa de seu perdão (Sobre mim pesa esta obrigação... ai de mim se não pregar o evangelho!). Uma obrigação de amor, não um fardo... Que você reconheça a grandeza de Deus e seus atos de amor, louvando e proclamando o Senhor, como os hebreus. E que você, como o chinês, por meio de suas palavras curve seu corpo diante do Pai, em reverência e aproxime seu coração de sua razão, rendendo-lhe graças, portanto, de mente e de alma, com todo o seu ser! Sejamos como o filho mais velho, Jesus, herdeiro de Deus e coerdeiro conosco! O filho mais velho que veio nos resgatar por amor ao pai. E que nós, com este espírito de gratidão, entremos todos na festa!
Hideide Brito Torres
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