As doenças que enfrentamos ao longo da nossa vida são duras e difíceis. Algumas delas roubam o sossego; outras roubam os recursos duramente guardados. Mas, para mim, as mais difíceis de enfrentar são aquelas que nos roubam as lembranças, os afetos, as dores do passado. As doenças que nos fazem esquecer... Sei que hoje eu gostaria de ter várias memórias retiradas de mim. Mas amanhã, elas podem significar uma trajetória de vitória que eu quererei lembrar. Esse conflito entre lembrança e esquecimento está presente no Salmo 77 e nos faz pensar sobre coisas que mudam e coisas que permanecem.
Os dias de outrora
Lembrança é algo esquisito... às vezes, confundimos nossos sentimentos com as coisas que realmente aconteceram. Nossas lembranças passam sempre pelo crivo das nossas emoções. Se nós mudamos nossos sentimentos sobre aquele fato, a tendência é que a lembrança ruim se amenize e talvez até se torne mais terna, mais querida para nós. Um exemplo disso é quando falece alguém. A dor iminente, a perda mais recente, dói profundo na alma. Mas com o tempo, mesmo o momento do sepultamento se veste da ternura dos amigos presentes, das mensagens dos que estavam longe. Os ouvidos se lembram das palavras de conforto; os braços se aquecem dos abraços recebidos; os dedos escorrem de apertos fraternos. A gente lembra, sente a dor fluir e o sorriso vem: é o conforto que muda a lembrança penosa.
O salmista também pensa nos seus dias de outrora. Ele pensa na sua dor atual e imediatamente começa a pensar nos dias antigos. Mania boba que o ser humano tem, de sempre pensar que antes era melhor que hoje; que o passado é melhor do que o presente. Cabe-nos pensar se não é assim somente porque a gente consegue ver o passado com emoções outras que não aquelas com que enfrentamos a dureza ou a alegria deste presente. Amanhã, pensaremos o mesmo do ontem, que é esse hoje do qual lamentamos!
É isso que o salmista faz: ontem, Deus foi bom... hoje, parece que não é... Será que Ele vai nos rejeitar para sempre? Nos versículos 5-9 há uma série de perguntas que caminham nessa direção: A promessa caducou? Deus se esqueceu de ser bom? Ele está irado e esqueceu as suas misericórdias? Num momento sereno, poderíamos dizer que essas perguntas são retóricas. Isto é, a resposta a todas elas seria “Não”. Mas, na hora da dor, surge um “talvez” e essas perguntas se fazem um vazio no coração de quem ora.
Mudou-se a destra do Altíssimo
Contudo, é no versículo 10 que está a chave entre o que é permanente e o que muda no decurso de nossa vida. O reconhecimento de que a nossa aflição, isto é, a nossa emoção constitui os óculos pelos quais olhamos a vida. O salmista cai em si e diz: “Eu estou vendo o passado de forma tão apaziguadora e o presente de modo tão perturbador, porque estou aflito”. E quando esta percepção da limitação de nossas emoções é feita, então, de certo modo, a mão de Deus muda! Ou melhor, vemos o agir de Deus porque tiramos o foco de nossa dor e a colocamos naquele que é “o mesmo ontem, hoje e eternamente, no qual não há sombra de mudança” (Hebreus 13.8). E esse mesmo Deus, apesar de imutável, “faz novas todas as coisas” (Apocalipse 21.5).
Eu já vivi isto algumas vezes na minha vida. Peço perdão ao Pai e confesso que ainda não aprendi direito esta lição: minhas emoções me enganam. Frequentemente eu penso que não conseguirei superar essa dor, que tal aflição jamais irá acabar, que estou sozinha ou necessitada. Constantemente minha fé caminha na corda bamba e penso que não haverá saída. Então, cada vez, o Espírito Santo me faz cair em mim: “É só a minha aflição. Se eu mudar o foco, poderei ver a mão de Deus, que opera mudanças”! Mas até chegar este momento de conversão, como é difícil vencer a ilusão de que o passado era melhor do que hoje em dia!
Recordar, lembrar, considerar, cogitar (v.11-12)
Os verbos que aparecem nesses dois versículos nos ensinam a como considerar nosso passado e nosso presente à luz da ação de Deus e também de nossos sentimentos e emoções. Primeiramente, é fundamental que recordemos os feitos de Deus. Que o passado seja ressignificado para nós. O Senhor agiu no passado. Seu poder é permanente. Somos provas vivas disso. Poderíamos ter sido destruídas antes, mas Ele nos livrou. Essa memória é nossa e é para nossa motivação cotidiana! Recordamos o que Deus fez, as maravilhas que Ele realizou – esta é nossa lembrança-chave! Mas ela não é para nos desmotivar do hoje, não é para efetuar comparações. Ela serve para estabelecer um traço fundamental do caráter de Deus: Ele não muda! O passado serve para nos lembrar que Deus é o mesmo!
Que segurança esta afirmação de fé deve ter trazido ao salmista! Mas ele faz além: sua lembrança o leva a considerar – esta palavra que significa refletir, ponderar, mas que também podemos entender na acepção de “levar em conta”, isto é, essa ação de Deus tem um peso diante da realidade que eu enfrento hoje. E o salmista complementa: “E eu cogito dos seus prodígios”, ou seja, eu penso, reflito, medito sobre os milagres de Deus. Eles são fonte de alimento para minha alma, de paz para meu ser interior, de fé para minha incredulidade, para minha humanidade tão transitória e inconstante!
Nossas memórias: lugar de permanência; nossa vida, lugar de mudança
Quero lhe convidar, à luz do salmo 77, a repensar suas memórias do passado. Deixe que elas fluam em sua vida como oportunidade de refletir profundamente sobre o que Deus já fez. Sem saudosismo, mas como fundamento sobre o qual se pode construir a fé do presente. Não se esqueça do que Deus já fez, porque esta é a base para você acreditar no que Deus fará! Mantenha seus sentimentos neste foco; não deixe que sua aflição impeça você de reconhecer esta realidade... Não é preciso sentir saudade de algo que está sempre presente e que é sempre o mesmo. Não sinta saudades de Deus: Ele não está no passado, Ele não se foi! Ele está sempre presente!
Por outro lado, recordar o passado é abrir-se ao novo que o hoje significa. É renovar-se. Se há algo que pode mudar sempre, sem perda de qualidade, é o nível de seu relacionamento com Deus. Aprofunde-o hoje... Deslumbre-se, como o salmista, para declarar com amor e alegria, com reverência por esta presença que se atualiza em meio às dores de nossa vida: “Que Deus é grande como o nosso Deus?” (v. 13). Repare: esta é uma pergunta do presente, porque no fim de tudo, é só aqui, no presente, é que Deus está... Ele não se prendeu ao passado como nós; nem se atemoriza do futuro nem o vê como escape, como nós. Ele vive plenamente conosco o dia de hoje e como outro salmo nos convida, diz: “Hoje, se ouvires a minha voz...” Mude seus sentimentos sobre seu passado e reconheça nele a presença imutável de Deus. Então você perceberá que Deus é sempre o mesmo, é sempre o novo, é sempre Deus! Sim, é possível confiar e permanecer Nele hoje; é possível mudar de derrota a vitória, de desânimo a vigor...
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