segunda-feira, 29 de abril de 2013

Espiritualidade: o que é isso?


Começo minha reflexão antecipando que definir espiritualidade é um desafio inconquistável. Muitos se debruçaram sobre o tema com muito mais pertinência do que minha experiência pessoal e o espaço deste artigo me permitem. Desta forma, o que intento é mapear alguns desses conceitos, ressaltar a amplitude do que a espiritualidade pode ser e motivar, de alguma forma, a nossa busca por uma experiência ao mesmo tempo individual e comunitária sobre este tópico. Isso dito, creio que nos liberamos para fruir deste texto mais como uma conversa sobre um assunto que a todos nós fascina e instiga.
Albert Nolan, um cristão sul-africano, disse: “na Bíblia, ter uma vida espiritual… é uma questão de estar sendo movido por um espírito qualquer, desde que seja ele espírito ou matéria. A vida espiritual é uma questão de estar sendo movido pelo Espírito de Deus… O oposto da carne não é o espírito em geral, mas o Espírito Santo... A vida espiritual é, então, o esforço constante e diário para assegurar que o espírito que nos move é o Espírito Santo de Deus e não qualquer outro espírito”.
De fato, qualquer espiritualidade cristã que se preze não prescindirá do Espírito Santo como sua força motriz. Podemos assumir muitas formas distintas de viver isso, a prática dessa espiritualidade pode encontrar os mais diversos formatos. Mas uma primeira dificuldade de entender a multiplicidade tanto da graça de Deus quanto das espiritualidades humanas reside no fato de que, ao falar de espiritualidade, estamos sempre tentando colocar o Espírito Santo em algumas das formas humanas.
Gary Thomas descreveu, em seu livro, Sacred Pathways (Conexões Espirituais), que conseguiu identificar pelo menos nove modos distintos de exercício da espiritualidade cristã. Sua lista inclui a busca de Deus por meio dos rituais litúrgicos, por meio de retiros junto à natureza, por meio do serviço solidário, por meio do ascetismo (completa separação do mundo), entre outras. Este autor procura trabalhar essas diferenças sem estabelecer nenhuma hierarquia ou superioridade de uma forma de ser em relação à outra.
Abordamos essa perspectiva em nosso livro: Espiritualidade do Cotidiano, publicado pela Editeo. Ali, ressaltamos algumas falas que provêm tanto das Escrituras quanto da própria experiência de João Wesley, unindo a piedade vital e a ciência, a leitura bíblica e a experiência, o sobrenatural e o natural... De fato, ali afirmamos que “a experiência pastoral e de vida que temos igualmente nos demonstra que as pessoas podem se achegar a Deus, por meio do Espírito Santo, de modos tão diferentes e criativos quanto podemos imaginar e mesmo além deles. Não podemos abafar ou apagar a chama da intimidade com Deus simplesmente por não gostarmos da cor da lenha utilizada. Não podemos estabelecer uma única forma de exercer a espiritualidade”.
Feito isso, percebemos que era possível refletir a partir daquilo que a espiritualidade provoca na vida pessoal e social, independentemente de ela se basear no aspecto mítico, racional, emocional, de observação da natureza, etc. Assim, listamos algumas possibilidades, que resgatamos aqui:
A espiritualidade bíblica promove mudanças interiores na vida da pessoa. Por mudanças interiores, entendemos as questões subjetivas de um ser humano: suas emoções, sua consciência, seus processos psíquicos, mentais. Por decorrência, a espiritualidade bíblica promove alegria, contentamento. Aqui contemplamos o aspecto da conversão pessoal a Deus e ao projeto do Seu reino.
A espiritualidade bíblica promove mudanças relacionais. Por mudanças relacionais, entendemos a interação do ser humano com o outro, o diferente de si mesmo, seja outro ser humano ou qualquer outro ser criado.
A espiritualidade bíblica promove mudanças sociais. Por mudanças sociais, entendemos as transformações que devem ocorrer na sociedade, a partir das suas estruturas e sistemas.
A espiritualidade bíblica promove força, vigor, dinamismo, ousadia frente aos desafios da vida. Jesus mesmo afirmou que a presença do Espírito Santo e sua atuação na vida dos discípulos e discípulas daria a eles e elas aptidão para falar frente a reis e tribunais, daria a ousadia necessária para pregar e levar a transformação e até mesmo lhes daria a capacidade de dar sua vida em favor dessa causa, como “testemunhas”. A espiritualidade bíblica não se acovarda diante dos desafios, mas os enfrenta, reflete sobre eles, propõe soluções e abre “caminhos nos desertos”.
A espiritualidade bíblica promove a fé e a esperança no porvir; cria no ser humano a expectativa da vida eterna, num Reino, governado por Deus, onde todas as desventuras passarão.
A experiência de João Wesley
O Dr. Steve Harper, no clássico “A vida devocional na tradição wesleyana”, destaca que a espiritualidade de João Wesley tinha algumas bases: o realismo, a disciplina, a amplitude, o sentido de comunidade, a dimensão da igreja. Essas dimensões lhe permitiam, pela ordem, ter uma correta visão de si mesmo (embora ele corresse o risco do pessimismo); a submissão das emoções à vontade (embora corresse o risco do legalismo); a possibilidade de ouvir, aprender e assumir para si valores de outros grupos, que lhe fossem significativos (embora fincasse seu ser na concepção de ser homo unius libri); a capacidade de partilhar com as outras pessoas, aprender com elas e ensiná-las e delas aprender; e a percepção do corpo de Cristo como um âmbito também institucional e reconhecido, pelo qual a pessoa não está só, mas integrada.
Creio que tudo isso tem a ver com o que listamos acima. A espiritualidade tem a ver com tudo o que fazemos e não apenas as coisas relacionadas com a fé ou a religião. Henri Nouwen afirma isso: "Se eu não posso encontrar a Deus no meio do meu trabalho — onde as minhas preocupações, dores e alegrias estão — não faz sentido procurar encontrá-lo nas horas livres, na periferia da minha vida. Se a minha vida espiritual não pode crescer e aprofundar-se no meio do meu ministério, como poderá ela crescer nas margens?”
Ainda hoje, muita gente quer insistir na vida devocional nos modelos antigos, quando as pessoas, aparentemente, tinham mais tempo livre. Mas, como viver essa vida de intimidade com Deus em meio ao caos do trânsito, dos e-mails, dos compromissos, da cidade grande, do cuidado com Deus e com os filhos, etc?
Por isso, quando o movimento metodista afirma a unidade indissociável entre atos de piedade e obras de misericórdia, está afirmando a multiplicidade possível da espiritualidade humana, conduzida ao seu máximo pelo mover do Espírito Santo de Deus. Dons espirituais, nessa acepção, são tão indispensáveis quanto o conhecimento dos melhores livros, do estudo sistemático, do conhecimento de Deus que se pode obter sob qualquer forma. A preocupação social tem tanta relevância quanto o jejum e a oração. A observação da natureza fala tanto quanto o culto mais bem preparado. A música atual tanto quanto a antiga podem inspirar, quebrantar e mover. Tradição e novidade se encontram, se intercambiam, se transmutam e permanecem. É uma espiritualidade, para dizer nos termos de hoje, “conectada”!
As bases persistem
Apesar de sua conectividade, de sua abrangência, de seu formato múltiplo, a espiritualidade cristã não prescinde de certas bases imutáveis e “imexíveis”. Uma delas é a Bíblia – Harper, em seu livro, aborda de modo profundo e sensível toda a dimensão relacional de Wesley com a Bíblia. Toda espiritualidade sadia desenvolve-se em relação com a Bíblia. Lembrando Gary Thomas, os naturalistas, que procuram Deus por meio da criação, encontram nas palavras bíblicas o direcionamento de seu olhar: os céus que proclamam, as estrelas das quais Ele conhece o nome; as descrições de paraíso de Gênesis a Apocalipse, etc. Os racionalistas encontram todas as discussões teológicas de Paulo, seus discursos filosóficos, seus argumentos bem fundamentos, usando a mente para estar com Deus. Os ascetas, que necessitam do afastamento para estar com Deus, encontram na Bíblia as perfeitas descrições de eventos epifânicos no deserto, nas cavernas, na solidão da noite, sob as estrelas do céu... Aqueles que valorizam as emoções se deparam com lágrimas, risos, dança, abraço, perdão, louvores... Quem precisa de rituais e os aprecia encontra as litanias dos salmos, as roupas lindas dos sacerdotes, os alimentos e seus significados, a Páscoa e suas mesas, perguntas e canções... Aqueles que encontram a Deus no encontro com o próximo, na ação social e política, encontram nos profetas seus ecos e modelos, nos reis segundo o coração de Deus, no povo que clama, nos pobres solidários, nas intervenções salvíficas de Moisés, Daniel, dos juízes e outros.
Enfim, a Bíblia mesma nos mostra este encontro entre pessoal e privado, entre individual e social, entre piedade e misericórdia é possível em quaisquer circunstâncias. Formas de culto, insisto sempre, não abarcam a dimensão da espiritualidade. Ela está na vida, mostrava Wesley, no ato de acordar e pregar um sermão, no ato de adormecer depois de uma oração, bem como no intervalo entre esses atos, no encontro cotidiano com as pessoas e com Deus... É uma vivência sempre, de acordo com nossos valores mais elevados, que vêm de dentro, de várias formas, mas sempre transborda para fora, para a comunidade e para o mundo, segundo nos ensina Wesley:
“Não há dúvida de que a raiz da religião jaz no coração, nos recônditos da alma; de que esta é a união da alma com Deus, a vida de Deus na alma do homem. Mas se esta raiz está realmente no coração, ela tem que brotar ramos (através de) exemplos de obediência externa”.

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