Então estou eu lá, no vau de Jaboque outra vez. Jaboque - efusão, vazão, vazante, fluidez. A palavra no hebraico, dizem, lembra a mesma de luta. Talvez venha daí o verbo em hebraico. É que numa luta há efusão de dores acumuladas, vazão de gritos e socos, fluidez de lágrimas e choro. Estou lá. Que nem Jacó, sozinha. As riquezas passam adiante, a família passa adiante, o trabalho passa adiante. E a gente ali, na solidão. De noite - espaço-tempo de medo, de abandono, de trevas.
Jacó é o líder da casa. É o herdeiro da bênção. É o "cara". Mas está sozinho. Essa é a pior hora, quando não precisamos fingir pra ninguém. Tudo vem à tona. Os enganos e engodos nos quais nos metemos para estar à altura de ser um ungido. As brigas em casa, silenciadas. As viagens longas fora de casa. Os retornos sem festa. As madrugadas vazias. A insônia. Tudo isso vem pra cima da gente como um furacão. Um tsunami. Bem assim, justo na hora da solidão e da noite.
Deus aparece. Tem jeito de gente, mas é anjo. E vem pronto para a briga. Ou a gente é que está pronto pra briga. Então a luta começa. Todo pastor ou pastora que porte o mínimo de honestidade sabe que essa luta acontece ao menos uma vez por semana, na hora de preparar o sermão, de subir ao púlpito, de pedir um milagre para um moribundo, de clamar por misericórdia diante da tragédia. A gente briga com Deus uma briga bem boa, daquelas de sair como o cara do Clube da Luta, para descobrir, ao fim, que também estamos lutando conosco mesmos.
Quem parou de brigar com Deus, se quer saber, não é porque encontrou a verdade. É porque desistiu. Porque comeu o prato de lentilhas. Porque se conformou com a bênção vendida. Quem tem caráter briga com Deus toda hora, porque quer entender a vontade Dele, porque não se conforma com uma fé pequena, porque quer ir mais longe, porque se sente numa prisão sistêmica, porque sabe-se um trapaceiro em busca da autenticidade. Meu Deus, é uma briga cinematográfica!
Ela dura a noite inteira e tem um propósito: "Não posso deixar que te vás sem que me abençoes!" Eu quero um selo de autenticidade no meu ministério e ele não pode vir de outros seres humanos; não pode ser resultado da minha vaidade, não pode fluir das minhas emoções. Tem que ser uma convicção profunda de que vem de Deus.
E então, o que acontece? Deus nos fere. No fundo, na alma. De verdade mesmo, pra deixar cicatriz. A gente sai mancando. Porque a bênção de Deus vem na ferida. Você se espanta? Mas é. Cristo levou isso ao extremo morrendo na cruz. A consumação só veio no último suspiro. E Ele nos disse que não seria diferente conosco. Que nos entregariam, torturariam, desprezariam. A gente se ilude achando que bênção é enriquecimento. Não é. Não há espaço para Deus nos lugares cheios de nossa existência.
De noite, na solidão, é que Ele vem. E briga conosco para nos mostrar quem é que manda. Porque a gente esquece. Fica bom no discurso e acha que pode abrir mão de Deus. Trapaceamos conosco mesmo por meio de estatísticas, relatórios, róis e cotas. Tudo isso é importante, mas não é aí que Deus está, nem por aí que Ele nos aprova. Seguimos lutando por uma bênção que nos diga que não precisamos temer a legitimidade do lugar que ocupamos. Se Ele nos abençoa, então ninguém poderá questionar nossa primogenitura. Mas ela não vai ser obtida na trapaça, senão na concessão divina. Aí poderá ser nossa, de verdade mesmo, ainda que tenhamos nascido em segundo ou último lugar. Jacó sabe disso. Se ele desiste, tudo se perde. Sozinho, ele tem que resistir à presença de Deus até que ela se consolide na vida dele de vez por todas. Se atravessar o Jaboque sem essa presença, nada feito.
Deus toca na coxa, algumas traduções dizem direita, outras, esquerda. De qualquer modo, você não será líder segundo a pretensão do seu coração ou da sua aparência, do que pode ostentar. Será líder mancando, para lembrar-se sempre de que quando é fraco, então é que é forte. Para ter certeza de que não será por força, nem por violência, mas pelo Espírito, diz o Senhor dos Exércitos. Para poder gloriar-se em Deus e não em si mesmo. Para consolar com o consolo recebido. Para não se esquecer de que Deus exalta os humildes, mas humilha os soberbos.
Sim, a autenticidade do chamado virá quando a dor alcançar minha coxa - o lugar da espada do guerreiro. Para eu saber que não posso desembainhar com desenvoltura a espada do Espírito; será sempre um exercício de dor e humildade.
E ainda quando eu pensar que conheço Deus, que posso chamá-lo pelo nome como se de todo o conhecesse, ele vai me dizer: Eu te dou a bênção, mas não vou dizer o meu nome, porque você nunca saberá a totalidade do que eu sou. Mas eu conheço você em tal totalidade que sou capaz de mudar o seu nome. E de trapaceira, talvez eu chegue a princesa. MAS só porque Deus é bom e pode mudar meu nome. Só porque Ele quer me abençoar ali, antes que o sol nasça e recomecem todos os cansativos trabalhos do dia. Quando anoitecer outra vez, talvez briguemos de novo.
Quando amanhecer, por causa da intimidade tresloucada dessas brigas, me levantarei para uma vida diferente, nova. Poderei ir ao encontro dos meus inimigos e lançar-me ao pescoço deles e chorar o milagre da conversão. Brigaremos, Deus e eu, pela verdade do meu chamado, noite após noite. Mesmo assim, por causa Dele, por sua promessa fiel, viverei o Peniel - que não é uma declaração de vitória, mas de alívio, de escape. Minha vida foi poupada, embora eu tenha visto Deus.
Alguém que vive um pastorado autêntico sabe que é alguém que teve uma visão da eternidade por um momento fugidio e agora segue mancando em direção ao seu alvo. Mancando, mas com a unção verdadeira de ser um humano que achou Deus. Ele não vai negar que manca, não vai disfarçar com vestes ungidas ou sapatos adaptados. Mancará como marca da humanidade tocada pelo divino. E esperará, com paciência e esperança no Senhor, que quando atravessar o vau encontrará outros mancos com ele pela estrada. E se regozijarão todos, porque, se assumirmos e mancarmos juntos, poderemos ir todos no passo das crianças "que estão sob meus cuidados"(Gênesis 33.13).
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