A agonia do Calvário
começou ontem, quando, reunido com seus discípulos, o Mestre amado comeu e
bebeu sua última refeição. Quando ele orou sozinho, pedindo forças para beber a
amargura da morte, enquanto seus companheiros dormiam... Bem disse o
evangelista que foi de tristeza, mas muita gente sabe que a causa de sua insônia
é o peso da dor que carrega no coração... Eles dormiram, sim, mas acho que foi mesmo
de incompreensão, de indiferença até, de achar que nada daquilo seria realmente
possível...
Mas, agora, é
inegável... Hoje é sexta-feira e o mal está feito. O beijo roubado da traição
já foi dado. E todos ouviram quando o galo cantou. O que pouca gente viu foi o
choro da vergonha, do arrependimento, da convicção da verdade quando bate fundo
na alma de um discípulo duro e turrão... Menos gente ainda viu o mal
irremediável do remorso, a corda tensa da culpa, da ignorância tão extrema do
amor perdoador do Pai, que não o nega a ninguém...
Sim, hoje é sexta-feira.
Era madrugada quando começaram os açoites e zombarias. O dia chegou, mas com
ele nenhum alívio para o preso inocente. As horas se aproximam, agoniantes,
proclamando o Calvário que virá. Nenhum pedido especial pela última refeição,
nenhuma visita dos parentes, nenhum ministro religioso para ouvir a confissão e
o possível arrependimento do condenado. Somente ele, os soldados, a tortura e a
cruz.
De fato, hoje é
sexta-feira. Começa a caminhada, a via dolorosa, uma tortura a mais, não
imposta aos demais, mas que ele sofreu na pele já exposta, cortada, ferida,
ardente e sedenta. Ele carrega a cruz e, nela, o peso do pecado de toda a
gente. Só hoje, em 2007, são sete bilhões de almas a serem remidas... Imagine
quantas foram ao longo de toda a história. Só de pensar nisso já vejo um milagre:
só o filho de Deus poderia mesmo carregar tamanho peso e alcançar o Gólgota
ainda vivo. Só o peso do meu pecado me faz cair tantas vezes ao longo de uma
vida tão pequena... não consigo imaginar o que é o pecado de uma eternidade de
anos desde o sexto dia da criação...
Coincidência ou não, no
sexto dia da semana, na sexta-feira, começou a subida para o alto de um monte,
em busca de um novo homem, uma nova mulher, que estes que hoje aí estão trazem
a marca desfigurada da imagem de Deus. E a restauração passa pela dor de uma
morte tão cruel. Quem poderia imaginar esse tal horror?
Sim, mas é sexta-feira.
Três horas da tarde, enfim, depois de uma eternidade ali, de dor, cansaço,
febre, sede, calor, alucinações e hipotermia. E o meio da tarde vira noite. Até
o inimigo romano admite, na boca do centurião: “Esse aí era mesmo um filho de
Deus”. O véu do templo se rasga. Ele brada: “Está consumado”. Seus olhos,
decerto já anuviados, vêem pela última vez num momento as mulheres que choram a
seus pés. Seu coração sente saudade dos discípulos covardes que fogem. E não
fugiria também eu?
Sexta-feira e eu estou
perdida no meio da multidão que volta para casa depois do espetáculo. Trago no
coração o luto de quem perdeu alguém querido. A revolta de alguém traído pela
justiça, pela política, pela religião. Trago as marcas de quem foi moído pela
mentira, de quem foi oprimido porque não tinha nem um tostão furado. Trago a
dor de quem foi impedido de entrar porque não tinha a roupa adequada.
Sentimentos de sexta-feira. Dor de cruz.
A sexta-feira é o túmulo
do ente amado que se foi. A sexta-feira é a bala perdida que leva um inocente
sem explicação. A sexta-feira é uma criança morta por bandidos no meio da
cidade, sem que haja proteção. A sexta-feira são crianças iludidas com a promessa
de uma vida melhor e feitas escravas num mundo onde supostamente não havia
escravos... A sexta-feira é a fome no mundo, as guerras, a corrida
armamentista, as armas de destruição em massa, o terrorismo em nome de Deus.
São as doenças de gente: a aids, o câncer, a dengue, a meningite. E, por que
não?, as doenças de bicho: a gripe aviária, a febre aftosa, a raiva... São
todas as coisas que fazem a criação de Deus chorar e gemer. Porque sexta-feira
é morte, é paixão, é dor, é angústia. É o sentimento de impotência que nos
invade diante da tragédia, da perda, da doença, do inexplicável... É a noite às
três horas da tarde. É a crise de fé: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” É o medo da fragilidade humana diante de um diagnóstico. É a dor
da fragilidade humana quando o corpo se quebra. É o silêncio que resta quando a
voz, finalmente, se cala. Sexta-feira é o nó na garganta, é o fim da picada, é
o fim da linha...
Talvez, por tudo isso,
afinal, quase não se fala, de verdade, na sexta-feira. Tentamos negar sua
existência. Falamos com alegria do final de semana, sem pensar, de verdade verdadeira, na sexta-feira.
Mas ela vem ao nosso encontro e não dá pra enganar. Dizemos odiar a segunda,
mas a rotina que ela proporciona na verdade nos alivia. Difícil é encarar o fim
dos processos. Doído é viver, de verdade, a sexta-feira. Mas é nela que nos
movemos a maioria dos nossos dias. É nela que reside o mais fundo efeito do
pecado humano. Por causa da sexta-feira é que vemos nos noticiários mais
eventos ruins do que bons. Por causa da sexta-feira, por causa da morte e do
pecado que levou a ela, de repente estamos nós, seres humanos, ameaçados de
extinção pelo aquecimento global...
E talvez, por tudo isso,
afinal, muita gente tenha perdido a esperança. Muita gente tenha entregado os
pontos. Muita gente descrê. Vai para casa como os apóstolos naquela distante
sexta-feira, depois de enterrar apressadamente seu morto, com medo do que possa
acontecer. Sem poder sequer chorar em público, sem oportunidade de lamentar. Sem
levantar os olhos da lápide, sem lembrar a promessa. Às vezes, ao contrário,
zombando dela e de sua aparente impossibilidade. Ninguém jamais voltou de lá...
por que seria diferente agora?
Estamos vivendo a
sexta-feira. Em todo o mundo, é sexta-feira e sempre será, enquanto a morte
existir e todas as suas forças reinarem nas vidas humanas perdidas, sem
esperança. Mas o problema dos
cristãos é exatamente esse: crer contra a própria esperança... Porque nós
sabemos o que os apóstolos, naquela distante sexta-feira, podiam apenas
desejar; ou que ainda não estavam preparados para crer...
Apesar de hoje ser
sexta-feira, como o apóstolo Paulo disse, eu creio também que “as aflições
deste tempo presente não são para comparar com a glória que há de ser revelada em nós”. Apesar de hoje ser sexta-feira,
“a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus”. E,
embora seja sexta-feira e a “criação esteja sujeita à vaidade, mesmo contra sua
vontade”, e muito embora ela “conjuntamente, gema e esteja com dores de parto,
e não só ela, mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gemamos
em nós mesmos”, nós cremos e vivemos na “esperança de que a própria criação há
de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos
de Deus”.
Apesar de hoje ser
sexta-feira, tenho fé e esperança, porque “na esperança somos salvos”. E quando
eu quero duvidar, por causa do amargor das minhas sextas-feiras, me lembro da
exortação de que “a esperança que se vê não é esperança; pois se alguém vê,
como o espera?”. Então eu lamento, e choro e sofro, porque não posso esconder
de Deus minha dor. Mas me refaço, e luto, e não me acomodo, porque “se
esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos”. E quando o peso da
sexta-feira parece demais para mim, eu sinto que “o Espírito nos ajuda na
fraqueza, porque não sabemos orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede
por nós, sobremaneira, com gemidos inexprimíveis”.
Por isso, prossigo,
ainda que seja sexta-feira. Meus olhos enxergam a morte, mas meu coração espera
com paciência pela vida. Meu corpo experimenta a dor, mas meu coração,
surpreendentemente, canta de júbilo. Minha boca se cala, mas minha alma clama.
Por ser sexta-feira, meus limites me param, mas minha fé me leva além. E porque
assim espero, também fico bem certa, de “que nem a morte, nem a vida, nem
anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem do futuro, nem a altura,
nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de
Deus, que está em Cristo
Jesus , nosso Senhor”.
Sim, é sexta-feira, e a
morte exala seu odor por toda parte. Lamentadores estão pelas praças e são
muitos os que predizem tempos de desgraças. Mas eu creio. Lembro-me do servo de
Deus do passado, que disse: “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto
na vide, o produto da oliveira minta. E ainda que não haja mantimento nos
campos e nos currais não há gado... Todavia, eu me alegrarei no Senhor e
exultarei no Deus da minha salvação. Javé é a minha força, firmará os meus pés
como a corça. Ele me fará andar altaneiramente...”
Sim, é sexta-feira. Mas
todo o cristão sabe, e crê, e espera, e suporta. Porque ele sabe que depois de
toda sexta-feira da paixão há um tempo de espera confiante. Talvez demore um
pouco, talvez o sábado se alongue. Mas não é sem fim. Depois de toda
sexta-feira da paixão, há sempre uma manhã de domingo. E depois de todo o
choro, alguém de branco virá e dirá: “Por que procuras entre os mortos aquele
que vive? Ele não está aqui, mas ressuscitou...” Sim, ainda é sexta-feira.
Enquanto eu estiver neste mundo tão cheio de dores, viverei esta sexta-feira.
Mas “eu sei que o meu redentor vive e que por fim se levantará sobre a terra. E
depois de consumida esta minha pele, então na minha carne verei a Deus.
Vê-lo-ei ao meu lado, os meus olhos o contemplarão.”
Sim, hoje é sexta-feira.
E o meu caminho é o de consolar os que vivem a dor desta sexta-feira. É
caminhar ao lado dos que aguardam o domingo da ressurreição. Tenho diante dos
olhos, dentro do coração, a memória de todos os que me esperam lá. E nos
veremos de novo, daremos braços e abraços, vamos rir e chorar de emoção.
Esvaziaremos os odres da saudade, nos despiremos de nossa mortalidade para nos
cobrir com as vestes reais da eternidade. Todos os motivos para chorar serão
queimados nas brasas vivas do altar de Deus. Todas as lágrimas serão extintas.
Todos os crimes e erros serão de uma vez por todas superados, julgados e
esquecidos. Vou recuperar o que perdi e sei que jamais perderei novamente. Essa
certeza me fortalece para esperar.
Sim, hoje é sexta-feira,
Senhor, mas não para sempre. Estou aqui, do lado de fora deste túmulo, e
esperarei. A hora certa há de chegar. Estarei pronta e meu coração já antecipa
a euforia, ainda que eu chore. É sexta-feira, Senhor... Eu preciso te encontrar,
para viver contigo, como diz uma canção popular, “como um dia de domingo”. Vem,
Senhor, transforma esta sexta-feira em domingo de ressurreição!
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