Esses dias, desde a quarta-feira de cinzas, são celebrados
em todo o mundo cristão como o tempo da Quaresma. Dizem os estudiosos que a
Quaresma é um período muito mais guardado e marcante para a Igreja Oriental,
especialmente a partir do século IV depois de Cristo. Nesse período, os
cristãos e cristãs refletiam sobre os 40 dias que Jesus passou no deserto, se
preparando para o início de sua missão. Esses 40 dias são lembrados pelo povo
cristão antes da Páscoa, que é o tempo da crucificação, morte e ressurreição do
Senhor.
Na Bíblia, não temos a palavra “quaresma”, mas dá para
perceber que havia um tempo de preparo da Páscoa. No Antigo Testamento, há
instruções para a preparação da Páscoa em Êxodo 23, Levítico 23 e Deuteronômio
16. Se três dos cinco livros do Pentateuco fazem referência ao momento, isso
mostra sua relevância e importância para o povo! Os preparativos incluíam
instruções específicas sobre o motivo da festa, o que comer, onde comer, onde
celebrar e quais as pessoas que deveriam participar do encontro festivo. No
Novo Testamento, Jesus manda seus discípulos prepararem a Páscoa em Mateus 26,
Marcos 14 e o texto de Lucas 22.7-18, que é nosso texto-base para a reflexão
nesta noite.
A quaresma é celebrada com a cor lilás ou roxa. Essa cor
significa expectativa, espera. Em nosso calendário cristão, ela aparece duas
vezes no ano: antes da Páscoa e antes do Natal. São dois eventos reveladores da
presença de Deus no mundo. E antes dos dois existe esse tempo de preparo, de
anunciação, de um “quase lá”, que precisa chamar nossa atenção. Talvez, afinal,
não seja à toa que também o movimento feminino no mundo use a cor roxa-lilás...
expectativa de coisa boa, não é? Da presença de Deus por meio das vidas das
pessoas.
Quaresma: preparo
Por que pensar nesse assunto, quando parece que tantas
coisas urgentes estão na nossa agenda e temos tanto para fazer? Algumas
práticas cristãs na Quaresma incluem jejum, oração e algum tipo de sacrifício
pessoal, de mortificação da carne. Era o desejo dos cristãos e cristãs de outros
tempos se sensibilizarem para melhor incorporar em suas vidas o significado da
morte de Jesus.
Era parte da perspectiva dos judeus, quando celebravam a
Pessach, que recordar a história antiga da libertação do Egito não era algo
para ser feito de qualquer maneira, sob o risco de perder algo da
sensibilização para ouvir a Deus. Mas eu gostaria de falar sobre a Quaresma
pensando no que ela significaria para Jesus, à luz do texto de Lucas.
Eu sempre me emociono com este texto e acredito que, porque
ele também é nossa referência para a Ceia, nas palavras de Paulo, hoje ainda
tenha um sentido mais especial para nós e para nosso tempo. A delicadeza dos
termos, das palavras escolhidas pelo autor, são fundamentais para
compreendermos o que isso significa para a gente, hoje, em nosso tempo.
Na tradução da Bíblia Judaica completa, se diz, no v. 7:
“Então chegou o dia da matzah, em que o cordeiro pascal tinha de ser morto”. No
grego, se diz que “era chegado o dia dos pães asmos, em que era preciso
sacrificar o cordeiro da Páscoa” Na nossa tradução, se diz: “em que importava
comer a Páscoa”, então parece que perdemos um pouco da força dessa expressão:
“era preciso”, “tinha de ser morto”. Era um momento inescapável, uma coisa que
não dá para contornar, evitar, postergar. Tem seu momento e deve ser feito com
precisão. O tom de urgência da Páscoa, então, fica muito evidente para nós.
Acho que podemos comparar isso a uma cirurgia que temos de
fazer. Esperamos poder celebrar a recuperação, a volta para casa. Aguardamos o
dia da alta médica. Não é possível chegar a isso sem o enfrentamento da mesa de
cirurgia. Quem já passou por um momento desses ou já teve de aguardar o
resultado da cirurgia de uma pessoa amada, sabe do que eu falo. Preparar-se é
angustiante. A mesma coisa é passar por fases da vida que exigem preparo: o
casamento, o vestibular, o concurso, a chegada de um filho, o período da
faculdade. Não é possível alcançar o final em nenhum empreendimento desta vida
sem o necessário processo de preparo. É disso que a quaresma falava: não é
possível a gente passar por um momento profundo com Deus, real, de
transformação, que é a compreensão do que a Páscoa significa – a entrega de
Jesus por nós – sem que nos demos conta de que se trata de algo grande. É
preciso preparo para isso, um preparo profundo, real, uma compreensão de que “é
preciso”; de que “tem que ser” e que não dá para contornar, despistar ou
minimizar isso.
Saindo do
entorpecimento
O preparo da Páscoa para o povo judeu significava rememorar
a condição deles como escravos no Egito e tudo o que implicou a saída deles de
lá. Cada comida – as ervas amargas, o pão sem fermento, os doces, o cordeiro –
era uma representação até teatral, bem didática, bem forte, bem real, de tudo o
que seus antepassados e antepassadas tinham vivido na pele. Acho o teatro essa
coisa mágica, capaz de nos transportar a outro tempo e lugar, coisa que Deus
colocou na vida humana como um dom de compreensão. Tenho certeza de que é por
isso que Jesus conta histórias, faz malabarismos malucos para curar pessoas,
colocando barro, mandando ir para depois voltar... são formas de introjetar que
o milagre que acontece no corpo não é espantoso por si mesmo, mas é a porta
para entrar no maior de todos os milagres, que é entender quem a gente é dentro
do coração de Deus. Isso me encanta!
Mas o preparo também visa fazer-nos sair de um estado de
entorpecimento que a rotina põe na gente. Num dia de preparo, seja para uma
festa, seja para um evento social, seja para uma morte, seja para o que for, a
vida muda de compasso. Pessoas se reencontram, abrem-se os álbuns de
fotografias, receitas de família são tiradas de caixinhas empoeiradas, dores
antigas são reavividas, conflitos são trazidos à tona. Tudo de bom e de mau
surge com vigor nessas horas que se tornam marcos na vida da gente. Esses
tempos são sempre hora de metanóia, de mudança, de transformação.
Avivamento sempre é
precedido por uma quaresma
Jesus ansiava comer a Páscoa com os discípulos e discípulas
porque aquele tempo e aquele lugar eram únicos no seu ministério. Nunca mais,
ele diz. Nunca mais vou comer de novo. Nunca mais teremos isso que temos aqui.
Os discípulos estavam plenos da presença de Jesus, talvez nem se tocassem que
haveria tempos de “faltura”, de ausência.
Estamos num tempo de farturas. Temos excesso de informação,
de entretenimento, de roupas, de comida, de tudo. Estamos cercados e cercadas
por um mundo de coisas que roubam nossa atenção e nos mantém funcionando o
tempo todo. Então parece que estamos num estado de embriaguez, em que as dores
são entorpecidas; as alegrias são passageiras; a morte não espanta, a violência
é lugar comum... estamos de novo escravizados pelos egitos diversos. Precisamos
reconhecer que neste tempo a igreja precisa de libertação, senão ela não poderá
nunca ser o Moisés desses tempos e levar o povo todo ao novo Canaã, que é Jesus Cristo, ele mesmo,
o Messias.
Lendo os livros de história eu percebo que todo momento de
avivamento foi precedido por um tempo de quaresma. As pessoas voltam às
Escrituras, percebendo que precisam de esvaziamento, de jejum, de
quebrantamento. Percebendo que estão drogadas por um estilo de vida pernicioso
e malvado, que rouba delas a humanidade, a capacidade de sentir e de amar, a
capacidade de estar ao lado de alguém e ser solidário, solidária de verdade.
Elas entram numa crise de abstinência: elas clamam, choram, gritam, sofrem.
Elas negam que estejam assim. É difícil encarar seu pecado como uma droga
entorpecente. E então, lentamente, ao se esvaziar desse modo de ser e de viver,
elas são preenchidas pela alegria da vida abundante. Seus valores são
transformados, a vida encontra leveza. Elas se desprendem de seus velhos
hábitos e valores e lentamente começam a sua jornada com Cristo. Não há nem
nunca haverá Páscoa ou Pentecostes sem a Quaresma. Tudo começa com o
arrependimento.
Anseio comer com
vocês esta Páscoa
É preciso sacrificar o cordeiro. É preciso comer a Páscoa.
Mas como fazer isso sem discernir o corpo e o sangue? O arrependimento, diz
João W
esley, não é apenas a tristeza de perceber o erro em nossas vidas, mas um
autoconhecimento. É saber não apenas que você peca, mas que você é um pecador,
uma pecadora. É saber não apenas que eu erro, mas que sou um ser errante. Essa
consciência me abre de um modo específico ao agir de Deus.
Sou uma discípula preparando a Páscoa. Enquanto a preparo,
lembro-me de tudo o que Jesus fez por mim. Lembro-me de seus ensinos, de suas
palavras. Lembro-me de que ele me tirou de dentro de um barco, de uma
coletoria, de umas redes rasgadas, de debaixo de uma figueira, de uma esquina
perdida, de um bando de estudos, de uma sinagoga. Lembro-me de que ele me
reconheceu e me deu valor quando ninguém dava nada por mim e me escolheu para
ser sua seguidora e para aprender com ele. Enquanto preparo a Páscoa, eu me
lembro de suas palavras que me enchem de esperança quando eu tenho esse governo
corrupto, esses problemas econômicos mundiais, essas guerras... quando acho que
não posso fazer nada e me escondo atrás das coisas. Eu me lembro de que ele me
prometeu poder – dymanis do Espírito – que é a capacidade de fazer, de
realizar. Eu me converto por preparar essa Páscoa, porque isso é dar lugar ao
plano eterno que ele tem. Que não é só de céu, mas também de justiça, vida,
transformação, renovo, bondade, amor, restauro nesta vida e aqui e agora. Eu
sou parte disso porque ele me pediu para preparar a Páscoa.
E quando ele chega e se senta à mesa, depois de eu ter
preparado tudo, estou muito mais sensível para ouvir sua voz amorosa. E ele me
diz: “Eu esperei ansiosamente para comer com você esta Páscoa”. Eu preciso que
você entenda que o cordeiro tem que ser sacrificado. Eu preciso que você
compreenda que o cordeiro pascal tem que ser morto. Essa necessidade é que vai
proporcionar a você a vida. Preciso que você compreenda que não é algo que
acontece por acaso. É a sua jornada de pecado e de afastamento de Deus, como
parte de toda a humanidade, que torna esse momento preciso e incontornável. É a
minha vontade de salvar, é minha escolha por você, como parte de toda a
humanidade, que torna esse momento preciso e incontornável. Eu estou ansioso
para comer com você!
Só quando a gente sai do entorpecimento do pecado é que a
gente pode entender o avivamento que existe nesse momento de Ceia do Senhor, de
Páscoa. É por isso que a gente precisa urgentemente de uma Quaresma. De um
quebrantamento real e profundo. Fico olhando nossas questões hoje, nossas
brigas com a igreja, com os líderes, com o mundo... fico olhando nossos
interesses, nossas vontades, nosso egoísmo quando tanta gente está morrendo sem
Deus. E eu vejo essa necessidade de sair do meu vício pecaminoso. Do meu jeito
de olhar o mundo, de culpar e responsabilizar a tudo e a todos pelas coisas
erradas. Vejo a necessidade de parar com as minhas fugas da realidade. Do meu
medo do que os outros e outras vão pensar. Eu preciso preparar a minha Páscoa.
Eu preciso viver a minha Quaresma.
Porque quando eu me sento diante de Jesus e o escuto dizer
que ele estava ansioso para comer comigo, algo extraordinário sempre acontece.
São esses momentos que me mostram que eu não nasci para mim mesma. Cada vez que
escuto Jesus falar isso eu olho em volta e a mesa fica maior, com mais cadeiras
vazias. Eu como e bebo aqui hoje, mas eu me levanto para seguir essa Quaresma
permanente, de preparar a Páscoa. Porque da próxima vez tem que ter outra
pessoa na cadeira ao lado. E eu é quem terei de dizer ao meu próximo, à minha
próxima: “Eu estava ansiosa para comer com você essa Páscoa”. Vê? Jesus não vai
comer de novo até que o Reino esteja pleno. Até que ninguém mais tenha fome. O
cordeiro já foi morto, mas eu tenho de compreender isso cada vez melhor. Não
posso esquecer. Tenho de viver essa Quaresma, de preparar essa Páscoa. Não
posso comer sem entender. Ou muita gente vai ficar sempre do lado de fora,
sempre com fome. E o Reino de Deus não vai se completar.
Exórdio
Qual é a sua quaresma pessoal? Qual é o entorpecimento
espiritual que afasta você do verdadeiro sentido da Páscoa? Qual o
arrependimento, o autoconhecimento que tem feito falta em sua vida hoje? Aproveite
esses próximos dias para jejuar, orar e tomar um tempo para sair desse
entorpecimento, que todos nós vivemos de algum modo, para se sensibilizar a
algum comando de Deus em sua vida. Aceite esse duro desafio. Quando a Páscoa
vier, você vai sentir o peso do sacrifício de Cristo. Vai ser doloroso e
difícil. Mas só passando pela Quaresma, depois pela Páscoa, é que a gente chega
ao Pentecostes: o enchimento do Espírito Santo que nos proporciona real envio e
transformação no mundo. Deus prometeu. Ele cumprirá! Aleluia!
Nenhum comentário:
Postar um comentário