segunda-feira, 24 de março de 2008

Se eu quiser falar com Deus (uma resenha para os alunos do curso de Cultura Religiosa)

Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil, é um clássico da música popular brasileira, escrita em 1980, segundo o próprio autor, a pedido de Roberto Carlos, que terminou por recusar a obra por não compartilhar da mesma idéia de Gil sobre Deus. O poema possui 36 versos, nos quais o autor enumera uma série de ritos ou atitudes que deve tomar para conseguir acesso a Deus. Esses ritos ou atitudes são apresentados em caráter de exigência, dado pela expressão “Tenho que”, que implica necessidade, diretivas, postulados (e não sugestões ou possibilidades). Sinalizam algo que deve realmente ser feito, sob o risco de não conseguir falar com Deus. Por outro lado, Gil não apresenta a origem dessa exigência (Vem dele mesmo? Vem de Deus? Vem de uma religião estabelecida?), deixando-a subentendida ou a critério do leitor da letra ou ouvinte da melodia.
Do mesmo modo, ele não aponta a resposta divina em nenhum momento. Todos os ritos pontuados são para que ele possa falar com Deus, dando a idéia de obtenção de acesso, não necessariamente de favores ou um retorno divino. Também não apresenta o conteúdo de sua fala (um pedido, um agradecimento, uma intercessão), senão a necessidade mesma de falar: uma fala que sinaliza acesso, estar diante de, encontrar-se com. A fé na existência divina está posta – ele não a questiona. Ela está dada de si mesma na forma como a música é construída. Mas os ritos dos quais se utiliza não podem ser diretamente encontrados numa dada religião, nem parecem diretamente vinculados a um culto religioso. São mais atitudes de postura em relação a vida, o que leva alguns críticos a considerarem que se trata de um texto filosófico, não religioso, no sentido estrito do termo.
“Ficar a sós, apagar a luz e calar a voz” indicam uma negação de si mesmo. Ele, como cantor, frequentemente está diante de platéias, sob a luz de holofotes e à espera de que sua voz seja ouvida. Para falar com Deus, a contradição é estar em silêncio e fora do foco principal. “Encontrar a paz, folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios” evocam a imagem do homem de negócios, preocupado e ansioso, sufocado pelos compromissos. Essa idéia é reforçada pelos versos seguintes: “esquecer a data, perder a conta, ter mãos vazias, alma e corpo nus”. Diante do consumismo dessa sociedade capitalista, seria necessário abrir mão dos valores que determinam o poder e a expressão social: ter a agenda lotada, a conta bancária polpuda, ostentar jóias nas mãos e roupas de marca no corpo.
Enfrentar o sofrimento parece ser a terceira categoria de deveres e ritos explorados pelo autor: “aceitar a dor, comer o pão amassado, virar um cão”. O sofrimento é encarado como uma forma de aproximação de Deus em diversas religiões, incluindo o Cristianismo em algumas de suas manifestações. Especialmente na Idade Média, o sofrimento era uma forma de purificação espiritual. O castigo do corpo era a superação do espírito sobre a matéria. Entretanto, creio que não se trata aqui do sofrimento neste sentido penitencial, senão também que é descer do seu próprio pedestal, colocar-se numa posição mais realista. Isso pode ser depreendido dos versos em que ele fala sobre lamber o chão dos castelos e palácios de seus próprios sonhos – isto é, reconhecer que seus projetos pessoais são ilusórios. O ser humano tende à auto-glorificação, mas achar-se “triste”, “medonho” e apesar do “mal tamanho” em sua existência, encontrar motivos de alegria é o caminho apontado pelo autor para falar com Deus. Uma visão cristã desta letra poderia até traçar paralelos entre essa idéia e a doutrina cristã do arrependimento como auto-conhecimento diante de Deus, mas não parece ser a opção do autor, desvinculado que está de uma religiosidade específica na totalidade da letra.
Gilberto Gil, na estrofe final, apresenta uma definição poética da fé sem o declarar abertamente. Ele chama o falar com Deus de “aventura”, “subir ao céu sem cordas” – uma memória do filósofo Norën Kierkegaard, que define “a fé como salto no escuro”? Difícil afirmar, mas que parece, parece! “Dar as costas” evoca a imagem do abandono do mundo, outra idéia bastante presente no Cristianismo. “Caminhar decidido pela estrada” também é uma forma de ilustrar uma opção consciente, se bem que não no sentido de conversão, porque aqui o autor deixa transparecer uma idéia própria de Deus, uma idéia que, de antemão, ele mesmo reconhece poder “dar em nada do que pensava encontrar”. Ele deixa aqui uma porta aberta e talvez a única idéia da resposta divina presente na letra: ‘Eu posso falar com Deus e pode ser que o que eu receba de volta não seja nada do que eu espero’. Assim, a letra encerra com um tom de mistério, próprio também da religiosidade humana: reconhecer que o divino é maior do que nossa imaginação ou expectativa.
Esta letra, por fazer parte do repertório popular e vinda de um autor popular, não tem, obviamente, o valor litúrgico ou sacro dos hinos e cânticos de uma determinada religião. É mais o encontro com Deus no cotidiano da existência e, nesse sentido, é a visão particular de um indivíduo, que pode ser aceita ou rechaçada por quem o ouvir. Mas não deixa de ser interessante, no aspecto poético, ético e até teológico, se somos capazes de ouvir, refletir e somente depois somar a experiência dele à nossa para propor alguma nova conclusão. Afinal de contas, pode ser que, ao pensar e repensar, também cheguemos ao final de um caminho no qual encontremos algo diferente do que pensávamos a princípio. Essa é a diferença da abordagem desta letra em termos de “cultura religiosa” e a leitura a partir da nossa religião propriamente dita.

domingo, 23 de março de 2008

Nem a morte o segurou

Como a morte poderia segurar o Criador da vida?
Como o limitado poderia ousar deter o ilimitável?
Quando na manhã do domingo romper a aurora
Quando o sol lançar seus primeiros raios sobre a terra
Ele abrirá seus olhos eternos e mais uma vez se porá de pé!

E será que o inferno ruirá abaixo de seus pés
E será que o céu romperá em folguedos diante de sua face
Todos os anjos, e arcanjos e querubins e serafins
Rompendo em gritos diante do trono do Pai
Dizendo, com espanto e assombro, com adoração e louvor:
Ele está vivo! Ele está vivo! Jesus triunfou!

E no seio da terra, no sepulcro selado,
A pedra revolvida, os guardas em pânico
Da morte recente só sobram alguns panos de linho
Jogados pelo chão, esquecidos para trás
Porque ele abriu seus olhos eternos, contemplou a vitória
E se pôs de pé!

E o diabo, arrasado e caído, nunca mais se levantará
E a morte, finalmente vencida, não nos pode mais intimidar
A vida ultrapassa as fronteiras da existência, pois Cristo está vivo
E vivo como está, nunca mais a morte outra vez o tocará
Porque ninguém, ninguém pode segurar o Autor da Vida!

Cantemos hoje aleluia, aguardando a redenção
Quando também nos levantaremos para sempre
E diante dele estaremos de pé
Contemplando com novos olhos eternos a eternidade da vida
E do paraíso que ele foi preparar para nós!

Até aquele dia, confiemos a ele nossa alma
E por mais que este mundo nos aflija
Nós sabemos que temos um Deus que não morre
E nem mesmo a própria morte o pôde segurar!

Pra. Hideide Brito Torres
Páscoa de 2008

sábado, 22 de março de 2008

A paixão de Cristo, uma história de amor


Todas as pessoas neste mundo vivem em busca de um grande amor.
Este amor tão grande que todos anseiam tanto...
É por isso que queremos ser amados por alguém.
Pelo pai, pela mãe, pelos irmãos, pelos amigos...
Queremos alguém com quem viver um grande amor,
Alguém que esteja lá por nós, para nós!
Uma mão que esteja estendida, um abraço que acolha,
Um sorriso que perdoe... simples coisas, um grande amor.

Eu também vivi em busca de um grande amor.
Eu estava sozinho, acima das águas escuras, dentro de uma escuridão sem fim.
Eu estava sozinho lá, quando tudo começou.
Era tão solitário, tudo tão sem forma e vazio...
Eu quis iluminar minha existência trazendo um clarão de energia,
E então disse: Haja luz!
Mas a luz, embora boa e bela, não era o bastante.
Eu queria viver um grande amor...

Eu fiz estrelas, e sóis, e luas, muito mais e além do que olhos pudessem ver
Na plenitude do espaço sideral sem fim.
Criei montanhas, vales, desertos, mares e lagos
Fiz peixes e aves, répteis e quadrúpedes
E embora tanta variedade de cores e coisas
Enchesse meus olhos de emoção e que tudo fosse muito bom
Ainda não era o verdadeiro amor que eu procurava.

Um verdadeiro amor tem que ser de igual para igual
Tem que entender você, tem que poder falar e ouvir
Tem que ter algo de você, tem que assemelhar
Eu queria alguém que pudesse olhar nos olhos
E ver um reflexo meu...
Foi por isso que eu fiz você.
Quando eu te fiz tudo o mais fez sentido como nunca antes
Foi por isso que eu pude, finalmente, descansar...
Estava consumado, no sétimo dia depois que comecei a procurar
Meu grande amor, o mais perfeito que pudesse existir...

Mas acho que você não entendeu muito bem
Ou talvez você pensasse em algo mais
Eu já tinha te dado o mundo – o que mais poderia haver?
Fiquei de coração partido nos longos séculos da existência
Em que eu procurei por você, busquei te trazer de volta
Fiz alianças e pactos, mandei anjos e mensageiros,
Fiz promessas e milagres...
Eu te amava tanto e não quis nunca desistir.
O grande amor, quando a gente encontra, não pode mais abandonar
Será que você pensou que eu não era capaz de sentir tudo isso,
Porque o meu trono estava lá nas alturas,
E você, criatura tão pequena, aqui na terra, olhando para o alto
Desejando mais e mais?

Por causa do meu amor então eu abdiquei do trono
Tornei-me pobre para que você tivesse todas as riquezas possíveis
Tornei-me servo para fazer de você um membro da realeza
Andei no mesmo chão que você, senti o mesmo sol e calor
Senti na garganta a sede que afligia você...
E quando tudo era demais para voltar atrás
Eu decidi dar tudo de mim.
Eu preferi morrer a que viver sem você
Preferi a escuridão da sepultura a um céu inteiro vazio de você.
Preferi os pregos e a cruz ao conforto sem a sua presença...

Sou teu Deus para a vida toda e para toda a vida.
Sou aquele que vai te amar quando não houver mais ninguém lá.
Sou eu o único capaz de ir até onde ninguém iria por você.
Nem seu pai, nem sua mãe, nem seu irmão,
Nem o grande amor da sua vida inteira
Pode ser o que eu quero ser para você...
Eu iria ao inferno para te tirar de lá – ou melhor, isso eu já fiz
E trouxe comigo as chaves para provar o quanto te amo.
Não importa o que você diga, vou continuar amando você para sempre.
Mas amar apenas você não basta
Quero que você me ame também!
Quero te levar a conhecer todo o paraíso que fiz para você.
Por isso, abri meus braços na cruz um dia
Para abri-los no céu para você, na eternidade...

Do sempre teu Salvador,

Jesus Cristo

segunda-feira, 17 de março de 2008

A dança e a música (sermão de casamento do Fabrício e da Fernanda)


Andarão dois juntos se não houver entre eles acordo? (Amós 3.3)

Estando hoje diante de vocês, um músico e uma dançarina de Deus, que se unem no casamento, só pude pensar que pelo menos neste ponto vocês já começam bem: ambos conhecem o ritmo, possuem uma relação íntima com a melodia, sabem contar os tempos e reconhecer as notas. A vida tem que ter musicalidade. Uma vida sem música é uma vida sem poesia. Quando Erasmo de Rotterdan disse que “o amor ensina música”, deve ser porque muitas das melodias mais lindas deste mundo nasceram no coração de pessoas apaixonadas. Gente que soube amar profundamente, quer esse amor fosse por outra pessoa ou mesmo pela vida, pelas coisas bonitas que podemos ver ou até mesmo o amor pela música em si. É verdade, a música é assim mesmo, sobrenatural, divina como nosso Senhor, pois com apenas sete notas se fazem todas as melodias que existem e aquelas que virão a existir e, mesmo assim, as músicas conseguem ser tão completamente distintas entre si.
Beethoven compôs sua obra mais conhecida, a 9ª Sinfonia, quando sua surdez já estava em estágio avançado e o tema dessa composição é a alegria. A partir do poema de Friedrich von Schiller, a Nova Sinfonia exalta a criação de Deus e convida todas as pessoas a fazer o mesmo, a reconhecer o poder de Deus. É interessante tanto a fé que ele expressa quanto a tragédia que ele vivia naquele momento. Mas Beethoven pôde continuar a compor porque a música já estava dentro dele. Já nem precisava ouvir com os ouvidos, porque os ouvidos da alma já estavam afinados ao toque do piano que havia em seu coração.
Assim também deve ser com vocês dois. Existe uma melodia que Deus compôs para a vida de vocês. Quem souber tocar, que a toque; quem souber dançar, que a dance e o espetáculo poderá ser igualmente grandioso: a felicidade de vocês, esse é o tom da canção que o Criador compôs. As notas que ele usa para isso são a amizade, o convívio, o amor, o companheirismo, a cumplicidade, os projetos, a vida sexual e afetiva que vocês construirão daqui para a frente. Cada nota dessas é igualmente relevante. Se uma soar fora de tom, certamente a melodia pode ficar prejudicada. A corda pode arrebentar-se e a coreografia pode sair do compasso.
Por isso, na melodia que o Criador compôs para a vida de vocês, uma só coisa não pode faltar: harmonia. Você, Fabrício, sabe que a harmonia tem a ver com a capacidade dos vários instrumentos de uma banda se equilibrarem para dar força ao conjunto da canção. Conquanto um instrumento ou outro possa fazer um solo de vez em quando, é preciso que os outros estejam ali para fazer “a base”, dar o suporte. Logo a seguir, terão que tocar juntos outra vez. Se um quiser “aparecer” mais do que o outro, a harmonia já era e a música vira barulho, sem ordem, sem mensagem e, por fim, sem ouvinte!
E você, Fernanda, sabe que a harmonia tem a ver com dar o passo que a melodia sugere, erguer os braços no momento certo, girar o corpo conforme o compasso e encerrar os movimentos exatamente quando a música chega ao final. Sem interagir com a música, a coreografia vira loucura, os gestos não fazem sentido. Por isso, George Balanchine afirmou: "Dança é música feita visível", sim porque a dança é um jeito de a gente “ver” a música. Deus colocou em você a capacidade de dançar e, num casamento, é mesmo muito importante “dançar conforme a música”, porque haverá momentos em que você terá de acelerar o ritmo para atender às dificuldades e desafios da vida a dois. Mas, em outro momento, terá de valsar levemente com a vida, aproveitar o momento, entregar-se ao som e viver a felicidade de um pequeno momento, estender o movimento dos gestos de amor.
Sábio era o profeta, que disse: “Andarão dois juntos se não houver entre eles acordo?” Como um poderá executar a canção sem que o outro dance? E como poderá alguém dançar se não houver quem toque? Essa é a partilha da vida, a maior exigência de um casamento: saber partilhar, saber falar e calar, saber ouvir e ajudar, saber estender a mão e suportar, saber dizer a verdade sem deixar de amar. Cantando e dançando, isto é, partilhando a vida a dois com os talentos que vocês têm, nós desejamos que vocês passem a sua existência conjugal em acordo, o mesmo tipo de acordo que existe entre a partitura e a guitarra, entre a orquestra e o maestro, entre o som e o movimento de quem dança. A vida de vocês poderá ser um grande espetáculo. Poderá ser maravilhosa além de todas as maravilhas deste mundo, porque o Compositor não é outro senão aquele que criou a própria música e hoje convida vocês dois a cantar e dançar na presença dele, a viver a vida com arte, não com mediocridade, com indiferença, com desamor.
Se vocês dois souberem, a cada dia, ouvir a melodia que Deus compôs para vocês, se forem fiéis intérpretes da canção, se forem sensíveis à dança a que esta canção convida, então vocês serão felizes, mesmo se outros barulhos interferirem na canção. Porque se vocês conseguirem isso, então serão como Beethoven: nem o silêncio mais profundo impedirá a música de ser ouvida na vida de vocês, porque quem crê em Deus não depende das circunstâncias para ser feliz: a música vem de dentro, não de fora. E isso é que faz toda a diferença.
O que desejamos a vocês é que andem juntos na presença do Senhor. E esse acordo, que tornará isso possível, é vocês saberem que não são iguais, nem precisam ser. Que vocês não precisam ter o mesmo ponto de vista sobre tudo, mas saibam andar no mesmo caminho. Que, ouvindo a música que o Senhor compôs para vocês, vocês consigam manter a harmonia em seu lar. Que haja na vida de vocês o mesmo acordo que existe entre a música e a dança. Se fizerem isso, tenho certeza de que o Senhor, do seu trono, se inclinará para abençoar suas vidas e fazer delas um grande espetáculo, capaz de emocionar a cada um de nós, que hoje aqui, de certo modo, compramos ingresso para assistir ao musical que hoje começa: o show não pode parar... Aceitem a regência do Pai a cada dia, e estejam preparados, pois para nosso Deus, na vida dos que são fiéis a ele, só existem “gran finales”... Que a vida de vocês seja como os versos finais da Nova Sinfonia de Beethoven, cuja letra é um testemunho e diz:
Irmãos, além do céu estrelado
Mora um Pai Amado.
Milhões se deprimem diante Dele?
Mundo, você percebe seu Criador?
Procure-o mais acima do céu estrelado!
Sobre as estrelas onde Ele mora.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Restaura, Senhor, a nossa sorte! (Salmo 126) - Publicado na Voz Missionária

Introdução
De 13 a 20 de maio de 2007, nossa Igreja realizou uma semana de intensas atividades, chamada Semana Wesleyana, à semelhança da que acontece em diversas esferas de nossa Igreja, inclusive na Faculdade de Teologia. Seria um tempo de evangelismo, celebração, capacitação, comunhão, ação social, lazer e muito mais. Animados e desafiados, meu esposo e eu, como pastor e pastora, nos engajamos profundamente no projeto.
E no domingo do dia 13, quando iríamos receber o bispo para abrir os eventos, celebrando, inclusive, o aniversário da Igreja, eu quebrei o meu pé ao tropeçar com a sandália. Sem perceber que meu pé havia “adormecido”, caminhei e virei o tornozelo. Que chateação, que complicação!
Agora, a semana já acabou e até mesmo atrasei-me uns dias na entrega deste texto para a Revista Voz Missionária. Enquanto escrevo, sinto o peso do gesso em meu pé. Tive de me adaptar a uma muleta e à constante necessidade de pedir ajuda às pessoas. Porém, esses dois fatores são inevitáveis para que a restauração do meu pé aconteça.
De fato, minha experiência me mostra que toda restauração envolve pelo menos dois momentos: a perda e a recuperação. E entre esses dois pontos, existe um misto de dor, de conquista. Ao final do processo, ficam as cicatrizes e as histórias, o amadurecimento e o novo passo. Enquanto isso, vamos escrevendo a vida, enfrentando o processo. Olho para o meu gesso e vejo nele os rabiscos de minha filha Amanda, que está aprendendo a fazer o seu “A”. E, apesar da dificuldade, encontro uma razão para sorrir. Como o povo, quando escreveu o Salmo 126.

Passado ou futuro?
De início, é interessante observar que algumas traduções deste Salmo trazem os verbos no futuro e outras, no passado. Essa é uma peculiaridade do hebraico que permite algumas leituras distintas. A tradução que mais utilizamos, de João Ferreira de Almeida, faz opção pelos verbos no passado. Mas outras, como “Salmos - Grande Comentário Bíblico” de Arthur Weiser e “Bíblia Sêfer”, da editora de mesmo nome, trazem os verbos no futuro.
Sem querer entrar muito nas técnicas do texto, mas valendo-me mais da intuição, posso dizer que esse Salmo expressa muito bem a idéia da restauração como algo contínuo na nossa vida. A renovação da nossa existência é constante. A partir de decisões que tomamos, tudo pode mudar e isso a todo o tempo: terminar ou começar um estudo, um relacionamento, um projeto, pode alterar o rumo da vida para sempre. E é sempre um recomeço, seja voltar um pouco atrás, seja caminhar em outra direção.
Por isso esse Salmo, que está contido nos cânticos cantados durante a peregrinação a Jerusalém (das subidas, dos degraus, de ascensão, entre outros subtítulos que aparecem na seção dos salmos 120-134), traz em si a síntese do passado e do futuro.
Podemos nos lembrar todos os dias de eventos de salvação que Deus tem operado em nossa vida, assim como o povo poderia se lembrar de inimigos que se levantaram contra eles ao longo dos séculos: egípcios, assírios, filisteus, cananeus em geral, babilônios e até aos tempos de Jesus ainda mais, como os ptolomeus, os gregos, os romanos... Não faltaram oposições nem opressões ou exílios. Entretanto, a todo o tempo, Deus proveu livramento, consolo, milagres, sinais e a possibilidade de recomeçar, reconstruir e renovar a vida e a esperança. Por isso, o sofrimento ou dificuldade presente é sempre uma condição tanto de memória quanto de esperança. Sabemos o que Deus fez e cremos no que ele fará!

Parecerá um sonho
O Salmo nos aponta uma situação difícil para o povo. A Bíblia Sêfer traduz assim o primeiro versículo: “Quando o Eterno trouxer de volta a Sião, a nós, seus exilados, nos parecerá estar sonhando”. Essa tradução explicita ainda mais o sentido de “restaurar a sorte de Sião”, que aparece na maioria das outras traduções, colocando a restauração no contexto da libertação. “Restaurar a sorte” também indica uma idéia de recuperação da dignidade e isso só é possível para quem se sente livre para ser um cidadão, parte de um povo, o que era muito importante para o povo de Israel e tinha a ver com sua identidade.
Com a delicadeza de quem pinta um quadro com palavras, o salmista quase que nos faz visualizar a cena: a boca cheia de riso, a língua cheia de cânticos. A restauração também tem um aspecto testemunhal, pois as nações estrangeiras confirmarão o fato de que Deus está em ação no meio do seu povo. E o povo afirma que sim, de fato, “grandes coisas fez o Senhor por nós”. Esta é a razão de “estarmos alegres”.
A restauração é sempre fonte de alegria, de regozijo e de esperança. Em nosso mundo hoje, temos perdido a capacidade e a dimensão do sonho. Vemos isso nas coisas mais simples do cotidiano. Observe apenas os jovens à sua volta: como tem sido difícil para eles sonhar! Antigamente, sempre havia facilidade em dizer o que a gente queria ser quando crescesse. Mesmo que fosse impossível, o sonho existia. Hoje, infelizmente, quando se faz essa pergunta a um jovem pré-universitário, não é raro receber a triste resposta: “Ainda não sei”.

Lágrimas que regam sementes
O Salmo nos convida a redescobrir o sonho e a vivê-lo nas pequenas e grandes restaurações que Deus faz em nossa vida. Ele também nos fala que isso não impede as tristezas, mas dá a elas uma razão de ser. Segundo Weiser, o final do Salmo recupera uma idéia generalizada na antiguidade, de que o processo de semeadura era difícil e, por isso, triste. Semear dá trabalho. Enquanto se semeia, os pés e mãos se ferem, o corpo se cansa, o sol castiga.
Em algumas mitologias antigas, a idéia de morte está presente na semente sepultada sob a terra. Semear é um tempo de dor. Mas a visão dos campos floridos, dos frutos amadurecidos compensa tudo. A lágrima não foi desperdiçada: ela regou a colheita. A restauração tem frutos como resultado. Ela é sempre um processo frutífero, por mais dolorido que seja. Por isso, é possível ver sorrisos onde antes havia lágrimas.
Afinal de contas, como vai acontecer comigo em relação ao pé quebrado, podemos antecipar o tempo em que largaremos as muletas de nossas limitações, andaremos livremente em amplos espaços e comeremos o fruto de um novo dia de verdadeira vida, de plenitude e de liberdade. Em sentidos muito mais amplos do que o salmista, em seu tempo, poderia imaginar!

Bibliografia
BIBLIA SAGRADA (Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil). 2.ed. Barueri, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993
GORODOVITS, David e FRIDLIN, David. Bíblia Hebraica. São Paulo, Editora Sêfer, 2006
WEISER, Arthur. Salmos. São Paulo, Paulus, 1984 (Coleção Grande Comentário Bíblico)

Esta foi a ministração que fizemos na abertura do Acampamento de Carnaval 2008

Como é o chamado de Deus a mim e a você? Como percebê-lo? O que o define?
Deus chama para o relacionamento
O primeiro chamado de Deus na vida de um ser humano não é para uma missão, nem para uma vocação pastoral, nem para um ministério da Igreja. O primeiro chamado de Deus é para a comunhão, para o relacionamento.
Na vida, somos chamados de muitas formas. As pessoas nos identificam pelo número de nosso CPF, pelo RG, pelo número do PIS, pela ordem que ocupamos numa fila ou pelos parentescos que temos: a Maria do João, a Cidinha que é filha do Manoel... Deus não tem números para saber quem somos. Ele também não precisa de referências para nos identificar. Ele nos chama pelo nome e nos conhece. Ele sabe cada detalhe de nossa vida, quantas sardas temos no rosto, o grau de encravamento da nossa unha do pé!
Deus sabe de tudo isso porque ele quer se relacionar conosco e nos chama a ter um relacionamento com ele. Relacionamentos se baseiam em conhecimento. Deus conhece você e quer se relacionar com você. Não se esqueça, porém, de algo muito importante: “Não fomos nós que escolhemos o Senhor – ele é que nos escolheu”. A iniciativa é dele, o crédito é dele, mas os méritos, as graças e a bênção desse relacionamento são nossos! Existe um desafio diante de nós, que é de conhecer o Senhor – conheçamos e prossigamos em conhecê-lo! E quanto mais você conhecer a Deus, também desejará estar em relacionamento com ele.
Em Gênesis 3.8, o texto diz que Deus “passeava” pelo jardim e procurava por Adão e Eva. Não era uma visita profissional, ou de obrigação. Era um “passeio”, um encontro descontraído e leve, uma amizade de fim de tarde. Quando você pensa em sua relação com Deus, como ela é: uma obrigação ou uma amizade? Porque jamais poderemos servir a Deus plenamente se o fazemos por um peso. Só nos entregamos de verdade às quais pelas quais temos amor genuíno! Deus quer “passear conosco” no jardim da nossa vida, curtir o prazer de um relacionamento em profundidade sem o peso de ter de fazer algo em troca. Daí a grande decepção do Senhor quando Adão lhe responde que ouviu sua voz no jardim e “se escondeu”, porque ficou “com vergonha” do Senhor. Nada pior do que almejar um relacionamento com alguém e descobrir que a pessoa está fugindo de nós, por qualquer razão que seja!
Em Provérbios 23.26 há um versículo frequentemente atribuído aos lábios do Senhor, a fonte da sabedoria: “Filho meu, dá-me o teu coração”. Duas lições importantes sobre o tipo de chamado que Deus faz a nós hoje podem ser tirados deste texto: primeiro, Deus chama pessoas para fazerem parte de sua família – “filho meu”. Deus não tem agregados, ou vizinhos, ou conhecidos, nem admiradores. Deus tem servos, tem amigos – e esses mesmos ele chama de filhos. Deus está sempre elevando o nível do seu relacionamento conosco. Se nós nos colocamos como servos, em humildade e obediência, ele afirma, em Cristo Jesus: Não chamo vocês de servos, mas de amigos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz e eu tenho contato para vocês o que vou fazer (João 15.15). Isso combina com a profecia bíblica: “Deus não faz nada sem que primeiro revele seus segredos a seus servos, os profetas” (Amós 3.7) e com os salmos: “A intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança” (Salmo 25.14)
Em João 2, diz que Jesus e seus discípulos foram convidados para um casamento. Jesus não estava ali porque estava planejando uma grande aparição nem o milagre que, por uma necessidade, veio a realizar. Max Lucado escreve uma interessante crônica sobre esse texto e destaca: Jesus estava ali para participar da festa! Sim, para rir, se divertir, brincar, saudar os noivos, comer e beber coisas de festa (humm, delícia!). Jesus estava ali para partilhar um momento feliz com pessoas amigas, que o tinham em consideração e o convidaram. Quando momentos bons acontecem em sua vida, como é que você permite ao Senhor participar deles? Com agradecimentos formais, com orações rápidas, ou com alegria? Com satisfação, com festa? Como é que você se relaciona com Jesus? Só na formalidade do culto? Jesus participa de seus momentos de lazer, de descontração, de realizar coisas que lhe são prazerosas?
Em Tiago 2.23 diz que Abraão foi chamado amigo de Deus. Uma pessoa “religiosa” não é amiga de Deus. Um “freqüentador de cultos” não é amigo de Deus. Um “pedidor de orações” não é amigo de Deus. Esse tipo de relacionamento é formal, superficial e utilitário demais para Deus. Ele não quer isso de nós. Viver a piedade da vida cristã, estar na vida da Igreja e solicitar a intercessão dos irmãos são apenas uma parte de algo maior. Deus quer amizade – isso pressupõe estar juntos, partilhar idéias e ideais, traçar planos em comum, fazer parte da vida um do outro. Deus está chamando você, nesses dias de retiro espiritual, para desenvolver uma amizade. Para que ele lhe mostre quem ele é e para que você possa abandonar qualquer superficialidade que ainda tenha para com o Senhor.
Deus chama a cada um...
... Pelo nome
Você pode até não gostar do seu nome, mas Deus gosta, porque assim ele pode chamar você de um jeito único! Pode haver 100 Marias ou 1000 Joões neste mundo, mas quando Deus chama esta Maria ou aquele João, este nome é único na boca de Deus! Este nome tem significado, rosto, jeito de ser! O nome das pessoas é tão importante para Deus que veja só o quanto a Bíblia fala sobre nossos nomes em relação ao Senhor:
Para Abraão, Deus disse: “De ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome” (Gênesis 12.2).
A respeito de uma pessoa para trabalhar no seu tabernáculo, Deus disse: “Eis que chamei pelo nome a Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá” (Ex 31.2).
A Moisés, Deus disse: “Farei também isto que disseste; porque achaste graça aos meus olhos, e eu te conheço pelo teu nome” (Ex 33.17).
E a Davi, o Senhor declarou: “E fui contigo, por onde quer que andaste, eliminei os teus inimigos diante de ti e fiz grande o teu nome, como só os grandes têm na terra” (2 Sm 7.9).
Jesus, quando conviveu com seus discípulos, chegou a colocar apelidos neles, conforme características que percebeu! Isso não é sinal de intimidade? Foi assim que Tiago e João viraram os “filhos do trovão” (Marcos 3.7) e Simão virou Pedro (Lucas 6.14).
Em Filipenses 4.3, está dito que os nomes dos salvos estão no livro da vida. Que coisa maravilhosa que o Senhor tenha escrito nossos nomes em seu memorial. Deus faz isso para nos mostrar que se importa particularmente conosco. Não somos nomes perdidos numa lista, fomos escritos, um a um, com amor!
Por causa dessa individualidade, desse relacionamento pessoal que ele almeja ter conosco, por causa do respeito e do amor que ele tem pelo nosso nome e por aquilo que somos, também o Senhor nos chama a ter o nome dele em alta conta. A viver de modo a honrar, exaltar e engrandecer esse nome, que, afinal de contas, é aquele que está acima de todos os nomes.
Quando Deus chamou Moisés, falou a ele: “Pelo nome de Iahweh, que é meu nome pessoal, eu não fui conhecido pelo povo” (Ex 6.3). Quando Deus falou isso, ele estava dizendo que não queria ser tratado de forma genérica dali para a frente. Da mesma forma como ele estava levantando um povo para si, ele queria que esse povo tivesse um nome especial, de intimidade, de conhecimento, com o qual invocar seu Deus libertador. Por isso, Deus revelou seu nome e sua essência: “Eu sou o que sou” – Iahweh! Assim, muita reverência é requerida de nós em relação ao nome santo do Senhor – “não tomá-lo em vão”, do mesmo jeito que não gostamos que nosso nome seja desprezado ou inferiorizado...

... individualmente
A salvação é individual. Cada um de nós deve ter uma experiência pessoal com o Senhor, com o fim de alcançar a salvação. Deus só salva as pessoas a quem ele conhece – e esse conhecer não é esse de conhecer o dono da vendinha da esquina, nem a filha do primo do vizinho do avô. A gente usa em português uma expressão engraçada para este tipo de relacionamento: “Fulano é um conhecido” – a gente sabe quem é, mas não tem intimidade com ele. Ou o que é mais absurdo, se a gente parar para pensar: “Conheço de vista” – apenas de ver não é possível conhecer, já declarou Jó (Jó 42).
O Senhor nos conhece: o sentar, o levantar, o deitar, o sair, o entrar e até nossa rebeldia contra ele (Isaías 37.28). Ele conhece os nossos pensamentos (Ezequiel 11.5). Jesus também declarou que somos suas ovelhas e que ele nos conhece (João 10). Jesus não troca os nossos nomes, não confunde nossas personalidades. Ele não se engana a nosso respeito. E mesmo nos conhecendo assim, tão profundamente, ele continua a nos amar... Quando o acolhemos em nossa vida, então não somos “conhecidos”, nem ele sabe “de vista” quem somos. Ele declara a nós, como fez às igrejas do Apocalipe: “Conheço as tuas obras e sei do que tu precisas realmente”! Que segurança poder servir a um Deus que nos acolhe em nossa particularidade, que leva em consideração quem somos!
É fato que somos chamados a servir a “um só Senhor, num só batismo, numa só fé e num só Espírito” (1 Coríntios 12). Mas, no versículo 11 deste capítulo há uma pérola de grande valor: o Espírito distribui os dons, como lhe apraz, individualmente! Quer dizer que ele olha para mim e para você e, conhecendo-nos, não concede seus dons por atacado, mas valoriza o que há de especial em mim e em você! Ele concede os dons a cada pessoa, de modo pessoal, individual, único!
Por isso o serviço que você presta ao Senhor se torna tão especial, pois Deus lhe concedeu um dom justamente porque só você pode fazer do jeito que você faz. É por isso que recusarmo-nos ao serviço do Senhor constitui tão grande ofensa ao coração amoroso do nosso Deus, pois ele preparou esse lugar para nós na missão, justamente porque ele se dispõe a depositar confiança em nós – sim, é isso que Deus faz – se dispõe a confiar em nós – quando dispensa sobre nós sua unção, sua graça e seu precioso Espírito Santo!
Por isso, neste retiro de carnaval, escutemos o chamado do Senhor – que é pessoal, que é de amor, que é para um relacionamento. E, escutando, possamos responder a ele. Como veremos na próxima ministração, Se Deus chama, da nossa parte ele espera a resposta!

O povo do coração aquecido

“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38) Uma experiência de mais de um dia John Wesley era um jov...