sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sempre novo, sempre o mesmo. (Salmo 77)


As doenças que enfrentamos ao longo da nossa vida são duras e difíceis. Algumas delas roubam o sossego; outras roubam os recursos duramente guardados. Mas, para mim, as mais difíceis de enfrentar são aquelas que nos roubam as lembranças, os afetos, as dores do passado. As doenças que nos fazem esquecer... Sei que hoje eu gostaria de ter várias memórias retiradas de mim. Mas amanhã, elas podem significar uma trajetória de vitória que eu quererei lembrar. Esse conflito entre lembrança e esquecimento está presente no Salmo 77 e nos faz pensar sobre coisas que mudam e coisas que permanecem.

Os dias de outrora
Lembrança é algo esquisito... às vezes, confundimos nossos sentimentos com as coisas que realmente aconteceram. Nossas lembranças passam sempre pelo crivo das nossas emoções. Se nós mudamos nossos sentimentos sobre aquele fato, a tendência é que a lembrança ruim se amenize e talvez até se torne mais terna, mais querida para nós. Um exemplo disso é quando falece alguém. A dor iminente, a perda mais recente, dói profundo na alma. Mas com o tempo, mesmo o momento do sepultamento se veste da ternura dos amigos presentes, das mensagens dos que estavam longe. Os ouvidos se lembram das palavras de conforto; os braços se aquecem dos abraços recebidos; os dedos escorrem de apertos fraternos. A gente lembra, sente a dor fluir e o sorriso vem: é o conforto que muda a lembrança penosa.
O salmista também pensa nos seus dias de outrora. Ele pensa na sua dor atual e imediatamente começa a pensar nos dias antigos. Mania boba que o ser humano tem, de sempre pensar que antes era melhor que hoje; que o passado é melhor do que o presente. Cabe-nos pensar se não é assim somente porque a gente consegue ver o passado com emoções outras que não aquelas com que enfrentamos a dureza ou a alegria deste presente. Amanhã, pensaremos o mesmo do ontem, que é esse hoje do qual lamentamos!
É isso que o salmista faz: ontem, Deus foi bom... hoje, parece que não é... Será que Ele vai nos rejeitar para sempre? Nos versículos 5-9 há uma série de perguntas que caminham nessa direção: A promessa caducou? Deus se esqueceu de ser bom? Ele está irado e esqueceu as suas misericórdias? Num momento sereno, poderíamos dizer que essas perguntas são retóricas. Isto é, a resposta a todas elas seria “Não”. Mas, na hora da dor, surge um “talvez” e essas perguntas se fazem um vazio no coração de quem ora.

Mudou-se a destra do Altíssimo
Contudo, é no versículo 10 que está a chave entre o que é permanente e o que muda no decurso de nossa vida. O reconhecimento de que a nossa aflição, isto é, a nossa emoção constitui os óculos pelos quais olhamos a vida.  O salmista cai em si e diz: “Eu estou vendo o passado de forma tão apaziguadora e o presente de modo tão perturbador, porque estou aflito”. E quando esta percepção da limitação de nossas emoções é feita, então, de certo modo, a mão de Deus muda! Ou melhor, vemos o agir de Deus porque tiramos o foco de nossa dor e a colocamos naquele que é “o mesmo ontem, hoje e eternamente, no qual não há sombra de mudança” (Hebreus 13.8). E esse mesmo Deus, apesar de imutável, “faz novas todas as coisas” (Apocalipse 21.5).
Eu já vivi isto algumas vezes na minha vida. Peço perdão ao Pai e confesso que ainda não aprendi direito esta lição: minhas emoções me enganam. Frequentemente eu penso que não conseguirei superar essa dor, que tal aflição jamais irá acabar, que estou sozinha ou necessitada. Constantemente minha fé caminha na corda bamba e penso que não haverá saída. Então, cada vez, o Espírito Santo me faz cair em mim: “É só a minha aflição. Se eu mudar o foco, poderei ver a mão de Deus, que opera mudanças”! Mas até chegar este momento de conversão, como é difícil vencer a ilusão de que o passado era melhor do que hoje em dia!

Recordar, lembrar, considerar, cogitar (v.11-12)
Os verbos que aparecem nesses dois versículos nos ensinam a como considerar nosso passado e nosso presente à luz da ação de Deus e também de nossos sentimentos e emoções. Primeiramente, é fundamental que recordemos os feitos de Deus. Que o passado seja ressignificado para nós. O Senhor agiu no passado. Seu poder é permanente. Somos provas vivas disso. Poderíamos ter sido destruídas antes, mas Ele nos livrou. Essa memória é nossa e é para nossa motivação cotidiana! Recordamos o que Deus fez, as maravilhas que Ele realizou – esta é nossa lembrança-chave! Mas ela não é para nos desmotivar do hoje, não é para efetuar comparações. Ela serve para estabelecer um traço fundamental do caráter de Deus: Ele não muda! O passado serve para nos lembrar que Deus é o mesmo!
Que segurança esta afirmação de fé deve ter trazido ao salmista! Mas ele faz além: sua lembrança o leva a considerar – esta palavra que significa refletir, ponderar, mas que também podemos entender na acepção de “levar em conta”, isto é, essa ação de Deus tem um peso diante da realidade que eu enfrento hoje. E o salmista complementa: “E eu cogito dos seus prodígios”, ou seja, eu penso, reflito, medito sobre os milagres de Deus. Eles são fonte de alimento para minha alma, de paz para meu ser interior, de fé para minha incredulidade, para minha humanidade tão transitória e inconstante!

Nossas memórias: lugar de permanência; nossa vida, lugar de mudança
Quero lhe convidar, à luz do salmo 77, a repensar suas memórias do passado. Deixe que elas fluam em sua vida como oportunidade de refletir profundamente sobre o que Deus já fez. Sem saudosismo, mas como fundamento sobre o qual se pode construir a fé do presente. Não se esqueça do que Deus já fez, porque esta é a base para você acreditar no que Deus fará! Mantenha seus sentimentos neste foco; não deixe que sua aflição impeça você de reconhecer esta realidade... Não é preciso sentir saudade de algo que está sempre presente e que é sempre o mesmo. Não sinta saudades de Deus: Ele não está no passado, Ele não se foi! Ele está sempre presente!
Por outro lado, recordar o passado é abrir-se ao novo que o hoje significa. É renovar-se. Se há algo que pode mudar sempre, sem perda de qualidade, é o nível de seu relacionamento com Deus. Aprofunde-o hoje... Deslumbre-se, como o salmista, para declarar com amor e alegria, com reverência por esta presença que se atualiza em meio às dores de nossa vida: “Que Deus é grande como o nosso Deus?” (v. 13). Repare: esta é uma pergunta do presente, porque no fim de tudo, é só aqui, no presente, é que Deus está... Ele não se prendeu ao passado como nós; nem se atemoriza do futuro nem o vê como escape, como nós. Ele vive plenamente conosco o dia de hoje e como outro salmo nos convida, diz: “Hoje, se ouvires a minha voz...” Mude seus sentimentos sobre seu passado e reconheça nele a presença imutável de Deus. Então você perceberá que Deus é sempre o mesmo, é sempre o novo, é sempre Deus! Sim, é possível confiar e permanecer Nele hoje; é possível mudar de derrota a vitória, de desânimo a vigor...

O furto

De mim podem ter furtado um objeto, mas deles roubaram a esperança.
Um coração roubado de esperança não sonha...
Objetos se recuperam; é difícil tirar segunda via de esperança.
É duro olhar nos olhos de uma mãe e ver vergonha,
Um sentimento de que falhou – quando falharam com ela
O mundo, o sistema, a vida, o companheiro que nada deixou
Senão suas marcas de egoísmo e ganância.

De mim podem ter furtado um objeto, mas deles roubaram os sonhos
E é por isso que eles pegam o que não lhes pertence
Porque o que era seu não está mais lá – a credulidade no mundo.
Cabeça de gente grande em corpo de gente pequena – paradoxo insuperável.
Nunca dá certo... gente pequena deve ser o mundo grande, como um parque de diversões,
Uma grande aventura...
Mas olhos de gente grande em gente pequena só vê o errado – e aprende o mal.

De mim podem ter furtado um objeto, mas deles roubaram a inocência.
E eu senti vergonha no alto de meus saltos, eles de pé no chão
Tendo de ouvir sermão em vez de contos de fadas...
Uma vez só eu queria este mundo possível aqui e agora...
Neste mundo que não quer Deus, mas não tem nada melhor para dar.
Que é arrogante e autossuficiente, mas não tem nada melhor para dar.
Que se acha tudo e não é nada, que não sabe dar, só cobrar...

De mim podem ter furtado um objeto, mas meu medo incerto
É que deles um dia vão roubar a existência
E vão dizer que eles mereceram, que são maus...
Mas a verdade nua e crua é esta:
De mim roubaram um objeto, deles roubaram a infância.
E há coisas que a gente dificilmente recupera.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Outro salmo fora dos Salmos: uma canção com cheiro de criança (publicado na Voz Missionária)

Lucas 1.67-79

Outra vez recorro a um salmo fora dos Salmos para falar de criança. No Natal, o cântico de Maria inspirou nossa coluna. Agora, trago à memória a canção de um pai, celebrando a chegada de seu filho, sua esperança, sua memória e seu nome para a posteridade.
Numa casa de sacerdote, onde o culto devia emanar em cada palavra, um novo som se faz ouvir. Não é um alaúde, não é uma cítara, não é uma harpa. É um choro de criança que faz salmodiar...
Ele divide seu canto em duas partes: uma que fala do passado (68-75) e outra que fala do futuro (76-79). A festa pela chegada de seu filho lembra a Zacarias toda a tradição do seu povo e toda a esperança que ele sempre carregou consigo. Tudo isso explode numa expressão de louvor, conhecida como “Benedictus”.

Bendito seja o Senhor, que visitou e redimiu o seu povo... plena e poderosa salvação
Certa vez, li um pensamento que dizia algo parecido com “cada criança que nasce é um sinal de que Deus ainda acredita na humanidade”. Uma espécie de voto de confiança, enfim, de que um mundo novo e melhor pode surgir a partir de uma nova criaturinha que chega para encantar e recomeçar. Essa também é a esperança de Zacarias frente ao pequenino João, que nasce em cumprimento de uma profecia e de um milagre.
Em primeiro lugar, sua canção é de gratidão e reconhecimento. Na chegada do bebê, é Deus mesmo que visita seu povo e o salva, não de qualquer modo, não de forma passageira, mas com uma salvação que é plena e poderosa! Que bom saber que nossas crianças podem inspirar tão grande esperança! Que nós possamos ver nossos filhos e filhas como uma visitação de Deus a nós! Isso pode nos inspirar, como Zacarias, a viver sacerdotal e devotadamente a eles, como mediadores entre nossos pequeninos e o seu Deus, de modo a infundir-lhes fé, temor, alegria e intimidade com esse Pai terno e eterno, que é nosso Senhor!

Para nos libertar dos nossos inimigos e usar de misericórdia com nossos pais
São muitos hoje os inimigos da vida, em especial, os inimigos da infância: a fome, a violência, o despreparo dos pais, a gravidez indesejada, o uso de drogas, o sexo indiscriminado e gerador de enfermidades, algumas incuráveis; a precocidade materna e paterna... Entretanto, ainda quando a criança que nasce encontra tudo isso desfavorável à sua vida, ainda assim pode ser fonte de libertação e de misericórdia. Isso, porém, não pode ser fruto do acaso, nem uma honrosa exceção (me vem à mente aquela propaganda do menino de rua que se tornou professor, educador e pai adotivo...), mas uma visão assumida, concretamente, pelos cristãos e cristãs de nosso tempo. Na época da Igreja Primitiva, havia uma postura, assumida pelos seguidores e seguidoras de Jesus, de resgatar as crianças entregues à morte nas praças romanas, abandonadas e desprezadas. Hoje, infelizmente, vemos muitos projetos sociais de nossas igrejas à míngua por falta de visão das comunidades, dos líderes, dos pastores e pastoras, dos órgãos de decisão os mais diversos, do governo federal e afins... De modo gritante em nosso mundo, enquanto proliferam os acordos comerciais com países como a China, meninas de peito e de colo morrem de fome e maus-tratos em lugares chamados de abrigos... Órfãos do tsunami são comercializados na Ásia... Filhos da guerra são desprezados entre sérvios e bósnios... Rejeitados de seus lares dormem sobre as marcas de sangue dos meninos da Candelária... Pequeninos carregam nas mãos as drogas que lhes tirarão a vida ainda em flor nos morros e favelas... Antes que as crianças sejam nossa libertação, é preciso que as libertemos no aqui e agora. Como Zacarias, somos os sacerdotes daqueles que nasceram para serem profetas e profetisas do Altíssimo!

Conceder-nos que, livres, o adorássemos sem temor, em santidade e justiça
A promessa de Deus repousando no corpo frágil do bebê João é promessa de vida abundante. Que é essa vida senão liberdade, confiança, santidade e justiça? Que modo melhor de viver senão em poder andar altaneiramente? Essa promessa de Deus, lembra Zacarias, foi feita a nossos pais e a Abraão. Esse menino é promessa feita gente; ele é fonte inesgotável de alegria e de esperança. Gente, temos de cuidar desse menino, porque ele é nosso tesouro de fé! Temos de protegê-lo porque sua presença significa que Deus não se esqueceu de nós!
De fato, esse sentimento sobrevêm a todo pai ou mãe que olha sua criança dormindo em sua cama. Sua tranqüilidade, sua inocência, sua respiração leve nos dão um tremor por dentro, um desejo de mudar o mundo para que nosso pequenino ser não sofra. Uma vontade de ser melhores, de fazer a vida dar certo... Quanta coisa boa uma criança inspira, se formos capazes de ouvir seus gritinhos, choros ou risos como quem ouve uma canção do céu... Sim, os pequeninos nos levam a adorar sem temor, a desejar a justiça, a promover a santidade, porque sua existência promove em nós o impulso do bem. Daí talvez Jesus ter dito que precisávamos nos tornar como crianças para alcançar o Reino.

Tu, menino, serás chamado Profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor
Algumas vezes na Bíblia se contam narrativas de violência contra as crianças: aquelas que morreram para que o Faraó e Herodes resguardassem seus tronos (Ex 1; Mt 2.16-18); aquelas que foram vendidas para cobrir dívidas (2Rs 4.1); aquelas que foram obrigadas a se afastar porque foram consideradas indignas pelos adultos (Mc 10.13); aquelas que foram feitas escravas em guerras que não eram delas (2 Rs 5.2). Algumas dessas narrativas são tão incutidas em seu tempo, que os autores não parecem nem mesmo discordar da prática. Por isso, Deus, ao longo da história, veio tocar o coração e a vida das pessoas em uma nova disposição, para ajudá-las a ver que ele defende o direito dos pequeninos (Gn 22).
Mas aqui, algo inusitado acontece: um pequeno vem diante do Senhor, Todo-poderoso. O Cristo, o Salvador, é precedido por um menino. E ele mesmo é um menino! Que surpreendente para um povo acostumado à história de reis, exércitos, cavaleiros, conquistadores! A festa e a dança acontecem porque a salvação chega ao som de um choro de criança!

Para dar ao seu povo conhecimento da salvação pela remissão dos pecados
João é visto aqui, por seu pai, como um cooperante do ministério da salvação que virá com o Cristo. A criança diante dele é um sinal não apenas de que a salvação existe, mas de que as pessoas tomarão conhecimento dela! Que bom é saber que esse novo tempo que Deus inaugura com essa criança é um tempo de não haver segredos! Ainda mais, que o conhecimento não vai gerar um grupo de superiores, detentores do poder, mas é um conhecimento para o povo, um conhecimento que retira os pecados, que acaba com o mal! Quanta alegria deve ter sentido o povo ao redor ao ouvir a boa notícia de que esse menino é portador de um conhecimento libertador... E nossas crianças hoje não o podem ser também?

O sol nascente nos visitará por causa da entranhável misericórdia de Deus
Em termos de imagem, como é lindo um pôr-do-sol! Mas só quem já experimentou a dor de uma longa noite reconhece o valor de um sol nascente (como diz aquele outro salmo: “minha alma espera pelo Senhor, mais do que os guardas pelo romper da manhã”). Sim, a esperança que vem com esse menino é a esperança de que um novo dia nasce para toda a humanidade. E isso não é obra do acaso, mas é por “causa da entranhável misericórdia de Deus”. Ou, para usar a expressão mais poética da tradução da Bíblia de Jerusalém: “graças ao misericordioso coração do nosso Deus”. A NVI fala sobre “as ternas misericórdias do nosso Deus”. Sim, acho mesmo que a figura de um bebê descreve bem a ternura de Deus...
Uma ternura que possibilita uma nova luz, que vem para iluminar de vida quem só conhece as trevas da morte (Is 9.1) e guiar os pés no rumo da paz. Esse é um sonho de criança, que Zacarias traz em seu canto, em sua ação de graças a Deus e reafirmação de suas promessas do passado e para o futuro. Por isso, se formos mesmo capazes de perceber a ternura de Deus na vida de nossas crianças, é bem capaz de sentirmos um cheirinho de talco ao abrir nossa Bíblia e ler essa canção. E se nosso coração estiver bem tocado por essa ternura, vamos ouvir a voz de Deus por entre risos e choros de todos os bebês ao redor... “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel”, nosso Deus!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Vídeo da juventude metodista... ser crente é ser feliz, né?


A galera metodista resolveu investir numa nova carreira... produzindo clipes... são os nossos jovens... Que tal ajudá-los na sua meta de conseguir 1 milhão de acessos? De risos? Não, lá no youtube mesmo... Segue o link e veja no que dá...

 
http://www.youtube.com/watch?v=5t-jMcmCxmo

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma real mudança de vida: a superação da inconstância (Salmos 106- 107)

Uma brincadeira de criança
Quando pequena, eu gostava da brincadeira de despetalar flores enquanto falava: “Bem-me-quer, mal-me-quer...”. A brincadeira tinha a ver, não raro, o desejo de adivinhar se o rapazinho que a gente achava “gatinho” gostava ou não de nós. O problema dessa adivinha infantil era a inconstância do processo. Dependente do número das pétalas da flor, o amor nunca era seguro... e persistia a dúvida. Essa brincadeira parece ser uma parábola da relação do povo com Deus, conforme expressa no salmo 106. E se assemelha, em muito, à vida de muita gente hoje, em nossos arraiais cristãos. Gente que conhece ao Senhor, mas precisa firmar-se. Dependentes das circunstâncias, às vezes elas se pegam dizendo, com suas atitudes: “Tenho fé, não tenho fé... Tenho fé, não tenho fé...”

Bondade e fidelidade: atributos divinos (v.1)
O salmo começa celebrando a Deus por sua bondade e fidelidade. Esta segunda qualidade de Deus é sempre exaltada na Bíblia, particularmente porque contrasta profundamente com a realidade humana, volúvel, impossível de se confiar. Estou lendo novamente o livro “O Monge e o Executivo” e os conceitos daquele autor, tão simples e já vistos por aí afora, me deslumbram. Um deles é o de compromisso: ater-se às escolhas feitas.
Para mim, esta definição contempla o que a fidelidade de Deus significa: Ele nos escolheu e continua nos amando, apesar de nós, de nossos revezes, de nossa ignorância, pecados ou desmazelo. Ele continua a ser fiel porque não olha as circunstâncias, mas a escolha que fez. Vamos ver como isso ocorre nos Salmos 106-107. Permitam-me para isso usar a TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia), feita em colaboração por excelentes pesquisadores bíblicos de diversas denominações cristãs de várias partes do mundo (e também de judeus, o que dá um toque especial, a meu ver...). Abro um parêntese para dizer que gosto muito dela porque é extremamente poética e preserva certa musicalidade nos Salmos, bem como a Bíblia NVI (Nova Versão Internacional). Variar as versões é bom, não é? Além de enriquecer o vocabulário, ainda nos dá outros pontos de vista para explorar em nosso relacionamento com o livro sagrado. Tenho um amigo que diz: Bíblia nunca é demais...
Mas, voltando ao que interessa! O Salmo 106 está tematicamente ligado ao 107. Verifique, no Salmo 106.44-46, como o salmista explicita a fidelidade divina: “Olhou para a angústia deles quando ouviu seu grito. Recordou-se de sua aliança com eles e na sua grande fidelidade voltou atrás. Fez com que deles tivessem pena os que os haviam deportado” (TEB). A fidelidade de Deus faz com que Ele interfira de modo salvífico em nossa realidade, apesar de sermos nós, como Israel, que o tenhamos abandonado. Ele volta atrás porque sua fidelidade fala mais alto. Quantos exemplos bíblicos desta realidade você é capaz de citar?
E aliada à fidelidade, está a bondade divina. A fidelidade anda de mãos dadas com a bondade no coração de Deus. A bondade é a prática de atos bons, como resultado do amor. E Seu amor é o fundamento de Sua fidelidade. E aí novamente entra o conceito bíblico de amor: uma decisão que é tomada, não um sentimento a ser experimentado. E uma vez tomada, a decisão de amar é sustentada pelo compromisso de ater-se à escolha feita. Isso gera capacidade de fazer-se confiável. Se uma pessoa se mantém fiel aos seus princípios, a consequência disso é se torna possível às outras depender dela, confiar nela, recorrer a ela quando necessário. Porque sua natureza é confiável... No Salmo 106.43, a fidelidade de Deus é reforçada – “Muitas vezes os libertou” – em oposição direta à inconstância do povo: “mas eles se obstinavam na sua revolta e afundavam na sua falta” (TEB) ou “eles foram rebeldes nos seus desígnios e foram abatidos pela sua iniquidade” (TCB). Obstinação e rebeldia humanas opõem-se frontalmente à fidelidade divina. Mas esta não se abate.

Inconstância: ausência de conversão
No salmo 107, o salmista faz um diagnóstico da situação do povo sem Deus: alguns extraviaram-se em solidões e estavam sedentos e famintos (v.4-8); outros habitavam nas trevas e na sombra da morte, prisioneiros da miséria e dos ferros, revoltosos contra Deus (v.10-12). Alguns, embrutecidos pelos seus desregramentos, aviltados pelos seus pecados, enfastiados de qualquer alimento, tocavam as portas da morte (v.17-18). Outros ainda estavam sobre as águas, subindo aos céus e descendo aos abismos, morrendo de enjoo, rolando como bêbados e sem habilidade para livrar-se (v.25-27). Bem, resumindo: a situação era feia!
Contudo, cada bloquinho de texto desses é seguido por outro que inicia com a afirmação: “Bradaram ao Senhor na sua aflição e ele os salvou de suas angústias” e segue contendo o livramento específico que cada grupo recebeu, de acordo com sua aflição distinta. Veja em sua Bíblia (v.6-7; 13-14; 19-20; 28-29).
Este destaque é de suma importância, tanto para nos mostrar que o amor de Deus é grande quanto para nos demonstrar que Deus não nos trata de modo homogeneizante. Ele está atento às especificidades de nossa aflição e quer interferir diretamente em nossa história. Contudo, a conversão verdadeira, a mudança de vida requerida nos convidará a nos assemelharmos mais ao Senhor, rompendo o círculo da inconstância para iniciar um caminho de crescimento contínuo com Ele. Estamos dispostos e dispostas a isso?
O salmista segue, demonstrando que o clamor do povo evidencia a fidelidade de Deus. Veja em sua Bíblia que aparece um terceiro bloquinho de versículos, compondo a harmonia deste poema. São versículos que nos convidam a celebrar a Deus por sua fidelidade no salvamento de cada parte de seu povo sofrido (v.8-9; 15-16; 21-22; 31-32). Na TEB, o início de cada bloco aparece assim: “Que celebrem ao Senhor por sua fidelidade e pelos seus milagres em favor dos humanos”. A fidelidade divina, frente à inconstância humana, é para ser reconhecida e celebrada. Ressalte-se que nos versículos finais (v.33-41) do salmo 107, o salmista inclui a natureza no projeto salvífico de Deus!

Mudança de vida: uma decisão de sabedoria
O povo é obstinado, rebelde, desregrado, oprimido pelos adversários, pecador. Apesar de ter experimentado a ação salvadora de Deus em muitos momentos de sua história, persevera nos seus erros, volta atrás, vacila, desiste. Falta-lhe o genuíno compromisso que vem da verdadeira conversão. Não consegue se ater à escolha, feita uma vez, de servir ao Senhor.
Que experiência isso traz para nossa vida hoje? Como esta palavra fala ao seu coração sobre seus caminhos com Deus? Eu penso que aqui temos que examinar detidamente a trajetória de nossas próprias vidas. Reconhecer nossa inconstância, como resultado de nosso pecado, prevaricação contra a vontade divina, desobediência ao discipulado radical de Cristo. Temos de nos comprometer com Deus, em Cristo, assim como Ele, em Cristo, se comprometeu conosco. Temos de nos ater às escolhas feitas e decidir amar ao Senhor e às pessoas. O salmista nos orienta de modo decisivo: “Quem quer ser sábio? Que preste atenção a tudo isso e que aprenda a discernir as bondades do Senhor!” (v.43).

O povo do coração aquecido

“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38) Uma experiência de mais de um dia John Wesley era um jov...