quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Dize-me com quem andas (Ed René Kivitz)

Não podemos ter uma vida espiritual sozinhos. A vida do Espírito é como uma semente que precisa de terreno fértil para crescer. Este terreno fértil inclui não só uma boa disposição interior, mas também um ambiente favorável.

É muito difícil viver uma vida de oração num ambiente onde ninguém ora ou fala com carinho da oração. É quase impossível aprofundar a nossa comunhão com Deus quando aqueles com quem vivemos e trabalhamos rejeitam ou até ridicularizam a idéia de que há um Deus que ama. É uma tarefa sobre-humana procurar fixar o coração no Reino de Deus quando todos aqueles que conhecemos e com quem convivemos têm o coração fixo em tudo, menos no Reino de Deus.

Não é, portanto, surpresa nenhuma que as pessoas que vivem em ambiente secular - onde o nome de Deus nunca é mencionado, a oração é desconhecida, não se lê a Bíblia nunca e a conversa sobre a vida no Espírito é completamente ausente - não consigam agüentar a sua dimensão de comunhão com Deus por muito tempo. Descobri como sou sensível ao ambiente em que vivo. Com a minha comunidade, as palavras sobre a presença de Deus na nossa vida brotam espontaneamente e com grande facilidade.

Quando levamos a vida espiritual a sério, somos responsáveis por criar um ambiente onde a mesma possa crescer e amadurecer. E, embora eventualmente não sejamos capazes de criar o contexto ideal para uma vida no Espírito, temos muito mais opções do que geralmente pensamos. Podemos, por exemplo, escolher amigos, livros, igrejas, arte, música, lugares para visitar e gente com quem estar que, no seu conjunto, contribuem para criar um ambiente em que é possível à semente de mostarda que Deus semeou em nós crescer até atingir as dimensões de um grande planta.

Estas considerações de Henri Nouwen estão de acordo com a sabedoria da Bíblia Sagrada que nos recomenda enfaticamente o cultivo da vida comunitária e das amizades espirituais com vistas à qualidade e aprofundamento de nossa experiência espiritual:

Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo. Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado. Porque nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até o fim. (Hebreus 3.12-14)

E consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixando a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quanto vedes que se vai aproximando aquele dia. (Hebreus 10.24,25)

Quem deseja experimentar Deus tem que andar perto de gente que anda com Deus. A amizade com Deus implica a amizade com os amigos de Deus. As pessoas íntimas de Deus nos ajudam a colocar Deus no foco. Primeiro seguimos os passos dos íntimos de Deus, até que aos poucos seguimos os passos de Deus. Esta parece ser a recomendação do apóstolo Paulo: Sede meus imitadores, como também eu de Cristo (1 Coríntios 11.1); Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados (Efésios 5.1). Primeiro você imita Paulo, que imita Cristo, que imita Deus. Depois você imita Cristo, que imita Deus. Até o dia quando você fica face a face com Deus.
Quem são as pessoas com quem você convive, pergunto eu? Com quem as palavras sobre a presença de Deus na vida brotam com facilidade? E quem são as pessoas com quem você convive com quem as palavras de murmuração, as fofocas, as maledicências, as doenças mutuamente são retroalimentadas? Quem são as pessoas com quem você convive que só servem para ficar cutucando as suas feridas, e você cutucando as feridas delas? Quem são as pessoas com quem você convive que trazem para a mesa da conversa a Palavra de Deus? Trazem para a mesa da conversa a necessidade da oração e da intercessão? Que valorizam a comunhão?
Palavras de Henri Nouwen novamente: “Mesmo nessas ocasiões, a competição arraigada, muitas vezes inconsciente entre as pessoas, as impedem de se revelarem umas às outras e de estabelecerem relações que durem mais que a própria festa. Quantas relações que você tem que duram apenas o momento da festa? Onde somos sempre bem-vindos nossa ausência não importa muito. E onde todo mundo pode ir e é bem-vindo nenhuma ausência é particularmente notada. Geralmente há bastante comida e bastante pessoas para comer a comida, mas muitas vezes parece que a comida perdeu o seu poder de criar comunidade. Não raro saímos da festa mais conscientes de nossa solidão do que quando entramos”.

Eu lamento muito que esta fala do Henri Nouwen “Por que tantas festas e reuniões amigáveis nos deixam tão vazios e tristes?”, se aplique também a muitas das nossas celebrações, do que nós chamamos dos cultos. Por que muitas celebrações, cultos nos deixam tão vazios e tristes?
É porque nós não nos aproximamos das pessoas. Nós chegamos depois que começa e saímos antes de terminar. Nós não nos olhamos nos olhos, nós não intercedemos uns pelos outros. E quando perguntamos como você está, é uma pergunta politicamente correta, pro-forma, que não está esperando uma pergunta sincera.
Por que é que anos de convivência com igreja mantém pessoas tão superficiais?
É porque elas convivem com a igreja, mas não convivem sequer com um irmão, com uma irmã. Convivem com o auditório, mas não convivem com uma pessoa sequer. Não abrem o coração, não confessam seus pecados, não compartilham suas dores. Dão desculpas de que não encontraram. Mas na verdade, na minha opinião, é que são muito seletivas. Elas querem sim, compartilhar as suas dores, chorar, confessar pecados, conversar e desenvolver amizades. Mas com pessoas especiais.
Nós somos chamados por Deus a relacionamentos, porque no fundo, no fundo toda pessoa é especial.
James Houston, no seu livro Mentoria Espiritual, diz assim: “Tendo em vista seu objetivo de criar organizações inteligentes, muitas empresas hoje veem nos seus funcionários qualificados o seu maior patrimônio. A expressão feedback tornou-se palavra do momento no contexto dessa interação dinâmica. Pedir feedback, dar feedback, receber feedback, agir com base no feedback. Em última análise, os melhores funcionários não são simplesmente os mais qualificados tecnicamente, e sim, aqueles cujo maior grau de crescimento pessoal está comprometido com o futuro da empresa. O êxito de uma empresa depende, portanto, não só da lucratividade, mas também da eficácia de sua mão de obra. É por isso que se está investindo tanto em técnicas de mentoria”.
Esse dar feedback, receber feedback, oferecer feedback é mais ou menos assim: “Eu sinto que você reage desproporcionalmente às críticas que recebe. Você é uma pessoa não muito aberta a ouvir quem discorda de você. Eu acho que se você acolhesse mais uma crítica que é feita contra você, você iria crescer.
Feedback é quando uma pessoa oferece a você um olhar de fora sobre você. Mas essa pessoa precisa conviver com você, prestar atenção em você, ouvir você, ter informações a seu respeito. Ela precisa conquistar o seu respeito, a sua admiração e a sua confiança. Aí então, ela diz assim: “Posso lhe dizer uma coisa? E você diz: “Pode”.
A qualidade da sua vida depende da qualidade das pessoas com quem você convive e da qualidade dos relacionamentos que você constrói com quem você convive.
Eu perguntaria a você: Você tem amigos que põem o dedo na sua cara? Você é transparente o suficiente com as pessoas para que elas tenham como pôr o dedo na sua cara? Ou você vive com uma máscara toda vez que está em público, mesmo na presença das pessoas que lhe são mais íntimas?
Quero adiantar pra você uma coisa: É impossível viver com máscara na frente da mulher e dos filhos. Ninguém consegue ser um mascarado 24h por dia. E se seus filhos não põem o dedo na sua cara, numa relação espiritual, o que eu quero dizer, numa relação de amor e de ajuda, um dia eles vão virar a cara pra você.
Se as pessoas que convivem com você não têm liberdade, se você não as acolhe, não as recebe para que elas coloquem o dedo na sua cara, o que as empresas chamam de feedback, e que são superficiais no mundo corporativo, e que na igreja, na comunidade da fé, na comunidade cristã, as pessoas acabam virando as costas para nós e isso é pior do que ter um dedo na cara.
Elas perdem o respeito por nós, já não ouvem mais o que nós falamos. Já não se importam mais com a nossa companhia, porque nós vivemos mascarados. E você sabe, o Senhor, nosso Deus, não gosta de mascarados, e ele, cedo ou tarde, para o bem dos mascarados, faz com que a máscara caia.
Essa relação entre Paulo e Barnabé é adulta, é madura. Ela é profunda, é verdadeira. É nesta relação que acontece o que o autor dos Provérbios diz que “como o ferro ao ferro se afia, também o amigo ao seu amigo”. Eu sempre penso que ferro quando afia com ferro sai faísca, por causa do atrito.
Eu pergunto: Você é o tipo de gente que pula dos relacionamentos quando esquenta? Quando atrita? E quando sai faísca? Então, você não vai crescer. Porque você sempre vai encontrar alguém que vai achar bonitinha a sua máscara por algum tempo. Porque é verdade o que se atribui a Abraham Lincoln: “É possível enganar a todos por algum tempo, alguns o tempo todo, mas não é possível enganar todo mundo o tempo todo”.
Esta relação de Paulo com Barnabé me ensina muito sobre a superficialidade das nossas comunidades cristãs; a superficialidade das nossas vidas. Mas ensina também muito a respeito da possibilidade de profundidade das nossas vidas.
Não importa o que fazemos nessa grande comunidade cristã, importam sim, os relacionamentos que construímos enquanto fazemos o que fazemos.
Não importa quanta gente sabe de nós, porque uma pessoa só é campo missionário suficientemente grande, e talvez o maior desafio ou campo missionário mais desafiador que nós temos é a pessoa que está mais próxima de nós. Por quê? Porque a qualidade da nossa vida depende da qualidade das pessoas com quem nós nos relacionamos e da qualidade dos relacionamentos que desenvolvemos com as pessoas com quem nos relacionamos.
Eu encorajo você de todo o meu coração a ser transparente, autêntico, com uma, duas, três pessoas. Construir relacionamentos de autenticidade, de verdade. Pessoas com quem você não precisa usar máscaras para estar junto.
Eu encorajo que você encontre pessoas, amigos. Abra-se, conviva com elas como quem diz assim: Eu estou pronto a que você coloque o dedo na minha cara, porque eu respeito você. Você é meu amigo. Eu confio no seu amor e no seu interesse legítimo por mim, então, pode me confrontar. Eu confio em você.
Esse é o caminho do nosso crescimento espiritual, do aprofundamento da qualidade da nossa vida.
Eu oro a Deus que possamos dizer a respeito da ibab o que o apóstolo Paulo disse à igreja de Roma: “Meus irmãos, eu mesmo estou convencido de que vocês estão cheios de bondade, e plenamente instruídos, sendo capazes de aconselhar-se uns aos outros”.

Ed René Kivitz é escritor, conferencista e pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Não tem nada a ver comigo

Durante algum tempo de minha vida, sempre que alguém me magoava, falava algo que pudesse me parecer ofensivo ou espalhava algum boato sobre mim, eu logo pensava: "Como essa pessoa pôde fazer isso comigo?". Às vezes, ainda me pego fazendo isso. Mas estou errada, absolutamente. Porque apesar de as pessoas fazerem coisas que me atingem, decididamente isto não tem nada a ver comigo. É uma lição que estou duramente aprendendo. Não sou eu... Não tem nada a ver comigo...
Essas pessoas estão fazendo contra si mesmas. Se me magoam, perdem a imensa oportunidade de fazer uma linda amizade, sedenta que estou de amigos verdadeiros neste caos que é o nosso mundo. Se me ofendem, jamais poderão partilhar comigo meu prazer pela fotografia ou pela poesia...
Se fofocam a meu respeito, jamais irão sentir a fidelidade que eu posso expressar. Jamais conhecerão minha capacidade de guardar seus segredos, de chorar junto com elas, de entender sua dor, de oferecer um abrigo. Jamais saberão porque não me conhecem. E estão perdendo a chance de fazê-lo.
Se querem esconder de mim seus segredos, isto não tem nada a ver comigo. Não é minha culpa se sentem que possuem algo a esconder. Se preferem a opacidade à transparência, então é porque talvez estejam acostumados ao cinza. Eu ando querendo mesmo é o azul: olhar pra cima, ser feliz, rir de coisas que eu nunca pensei que pudessem ser engraçadas. Daria tudo para partilhar tudo o que tenho dentro de mim. Meus desejos estão patentes aos olhos das pessoas a quem eu amo. Nada há que eu precise esconder deles. Nada quero que eles não queiram. Não entro sequer numa sala onde nenhum deles possa estar. Eles sabem que podem contar comigo. Se algum dia não o quiserem, são livres para sê-lo. Isso também não terá nada a ver comigo, se não for eu a pessoa a trancar a porta...
Longe de mim ser perfeita. Talvez eu mesma faça a outras pessoas tudo isso de que estou falando que algumas têm feito a mim. Mas, entenda, se eu o fizer, isso será problema meu, não delas...
É o que Deus tem me falado muito nesses últimos dias: não adianta o que você não pode mudar nos outros. Resigne-se. Há muito trabalho em mudar o que precisa mudar em si mesma. Com novos olhares, talvez o mundo seja diferente. Talvez as pessoas sejam diferentes. Não posso saber nada do que não tem nada a ver comigo. Mas posso e devo me interessar pelo que tem a ver... Ao invés de me preocupar com quem não me ama, me deseja mal ou não me aceita, como disse Ricardo Gondim, meu olhar deveria se focar em outras coisas: "Desisti das onipotências, abri mão da perfeição e comecei a perceber que Alguém me ama sem que precise provar nada para Ele. Tudo é infinitamente gracioso." Deus é o único que pode me ajudar a focar-me no que tem a ver comigo. Por isso, estou orando com um novo espírito. Caindo em equívocos, voltando a velhos erros, aprendendo... Ele me propôs o desafio da maturidade. Isso tem tudo a ver comigo...

Mutações (um poema antigo, do baú dos meus arquivos)





É verdade: não nascemos prontos,
nem prontos morremos.
Somos seres em permanente mutação.
Corpos, mentes e corações que nascem, crescem
e nunca páram de se alterar.
Mudamos a cor dos olhos e o jeito de ver a vida;
                 a cor dos cabelos e a forma de sonhar.
Ganhamos rugas e mágoas, cicatrizes e realizações...
Somos humanos porque somos mutantes.
E por assim sermos, somos infinitos, ainda que morramos.
Porque morremos e viramos lembrança.
É apenas a lembrança que pode nos fazer imutáveis:
nela, quase todos tornamo-nos perfeitos, porque idealizados.
E é a nossa última forma de mutação:
revestidos do amor e da saudade dos que nos acalentam,
assumimos novos corpos, novos jeitos
e passamos a habitar nas conversas sentidas,
                                   nas noites solitárias,
                                  nas fotos antigas.
Somos mutantes infinitos mesmo quando não há lembrança.
Porque até o nada tem sua forma de ser.
É verdade: não nascemos prontos e nem prontos morremos:
Somos seres em permanente mutação.
É por isso que jamais nos conheceremos inteiramente.
Por isso reagimos de modos tão surpreendentes à vida.
Por isso choramos e rimos, desistimos e resistimos.
Por isso sempre queremos algo mais.
É que há um sopro de Deus dentro de nós e é fascinante,
um Deus que é sempre o mesmo e faz sempre o novo.

Eu desisto!

Chega uma certa hora na vida que você tem que entregar os pontos. Não dá pra ir adiante. Este momento humanoide de assumir suas limitações é uma hora cheia de dor e frustração. Mas eu já chorei o que tinha pra chorar. Estou emocionalmente esgotada. Estou fisicamente dolorida. E estou espiritualmente frustrada. Portanto, é a hora certa de jogar a toalha.
Estou assumindo que há coisas que, por mais que eu me esforce, não consigo aceitar, nem entender, muito menos mudar. Elas doem muito e já fiz o possível para minorar minha dor, mas não importa o que eu faça, ela só parece aumentar. Tento me livrar das dúvidas, mas elas persistem em me incomodar. Fazem minha cabeça rodar e meu coração doer. Estou farta disso. Ainda mais porque são coisas dos outros, na verdade, e não minhas.
E já que não posso dominar o que desconheço, nem mudar ninguém, estou desistindo. Estou me resignando ao que eu sei. Estou aceitando o mistério e respeitando o segredo. Não quer dizer que não vá me incomodar mais. Só que também não vou mais lutar contra, nem querer algo que está fora do meu alcance.
Estou vendo um pouco mais de mim. Tentando estabelecer claramente a diferença entre o que eu quero e o de que preciso. Minha mãe, em toda sua sabedoria, desde criança que me falava que eu precisava saber definir isso. Saber esta diferença é fundamental para sobreviver em meio a esse vendaval de emoções e torturas psicológicas em que a gente se mete de vez em quando.
Não quero mais me lamentar da vida, nem andar de olhos baixos. O que existe para se ver está em cima. Estou tentando achar uma sanidade qualquer neste mundo doido. E gostaria de não ficar espiritualizando demais. As pessoas são egoístas mesmos. Se não houvesse diabo, elas inventariam um, porque não querem assumir suas próprias culpas. Em não havendo diabo, diriam que são os outros.
Eu não quero mais permitir ser ferida e as feridas que eu tenho, quero curar, antes que infeccionem. Eu tenho uma vida maravilhosa para viver e é assim que ela vai ser, porque eu estou dizendo que será. Porque o Senhor é o meu pastor... porque eu não quero sentir falta de nada. Não quero sentir falta de nada de que eu realmente não precise. Lendo um livro dias desses, me deparei com uma frase que é o que eu sinto neste momento: "Não estou dizendo que estou certo em sentir-me assim. Nem estou dizendo que você fez com que eu me sentisse assim. Estou apenas dizendo que eu me sinto assim." Acho que é isso que eu preciso fazer diante de Deus. Assumir que apenas me sinto assim e deixar que Ele faça o que Ele acha que deva fazer com aquilo que eu sinto. Confesso: não sei o que eu quero. Alguém sabe? Mas seja lá o que for que eu estivesse fazendo, Deus, eu desisto. Não deu certo, não funciona assim. Por favor, então... quer me dar uma mãozinha?

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Os silêncios

Os silêncios em nosso coração, em nosso olhar. A eles é que devíamos dar ouvidos. Há imensa coragem nos discursos nunca discursados, nas ideias nunca idealizadas, nas palavras mudas dentro do peito. Falar, isso é mais difícil, requer perder o medo que nos assombra. Por nos acomodarmos ao barulho que nos rodeia, tendemos a esquecer a força dos silêncios. Mas são eles que fazem muitos corações pararem, muitos pulmões cessarem de fornecer ar, muitos olhos deixarem de ver... Devemos ouvir mais os silêncios, com a coragem de interpretar a linguagem muda que tanto nos diz. Deveríamos ter a coragem de enfrentar a dor que o silêncio carrega e que o barulho quer tornar sem sentido. Os silêncios são os gritos da alma. Só ouvidos atentos podem ouvir - e mesmo assim, é preciso querer. Os meus silêncios andam ao meu redor, volta e meio os ouço - às vezes, choro, às vezes, corro. Às vezes, como milhões de pessoas no mundo, finjo que não estão lá. Só pra trombar com eles na próxima esquina, pois há de convir que eles nunca fogem de nós. Preciso ter a coragem do Mestre, que após cada batalha da vida, enfrentava os seus. Ia ao monte sozinho para orar, escondia-se do povo esbaforido por milagres, ia para o deserto... Talvez seja fato que só quem enfrenta primeiro seus próprios silêncios pode depois andar sobre as águas. Se ao menos conseguimos tirá-las de dentro das almas, do entorno dos olhos, podemos andar por cima delas - e até chamar os outros a fazer o mesmo...

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Apesar de ser sexta-feira

Mateus 27
Apesar de hoje ser sexta-feira, como o apóstolo Paulo disse, eu creio também que “as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que há de ser revelada em nós”. Apesar de hoje ser sexta-feira, “a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus”. E, embora seja sexta-feira e a “criação esteja sujeita à vaidade, mesmo contra sua vontade”, e muito embora ela “conjuntamente, gema e esteja com dores de parto, e não só ela, mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gemamos em nós mesmos”, nós cremos e vivemos na “esperança de que a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus”.
Apesar de hoje ser sexta-feira, tenho fé e esperança, porque “na esperança somos salvos”. E quando eu quero duvidar, por causa do amargor das minhas sextas-feiras, me lembro da exortação de que “a esperança que se vê não é esperança; pois se alguém vê, como o espera?”. Então eu lamento, e choro e sofro, porque não posso esconder de Deus minha dor. Mas me refaço, e luto, e não me acomodo, porque “se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos”. E quando o peso da sexta-feira parece demais para mim, eu sinto que “o Espírito nos ajuda na fraqueza, porque não sabemos orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós, sobremaneira, com gemidos inexprimíveis”.
Por isso, prossigo, ainda que seja sexta-feira. Por ser sexta-feira, meus limites me param, mas minha fé me leva além. E porque assim espero, também fico bem certa, de “que nem a morte, nem a vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem do futuro, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”.
Sim, é sexta-feira. Mas todo o cristão sabe, e crê, e espera, e suporta. Porque ele sabe que depois de toda sexta-feira da paixão há um tempo de espera confiante. Talvez demore um pouco, talvez o sábado se alongue. Mas não é sem fim. Depois de toda sexta-feira da paixão, há sempre uma manhã de domingo. Vem, Senhor, transforma esta sexta-feira em domingo de ressurreição!

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O que é a Igreja?

Um corpo que sente - Salmo 73

Dizem que muitas doenças que temos são psicossomáticas. A etimologia dessa palavra é interessante. Ela vem de psique – traduzida no senso comum por alma, mas que indica vontade, desejo, o íntimo do ser – e soma, que tem a ver com o aspecto físico do ser, a matéria, o corpo. Assim, aquilo que a pessoa sente se projeta no seu corpo de modo concreto, fazendo-o adoecer. São doenças psicossomáticas a gastrite, a úlcera, a enxaqueca e até mesmo alguns tipos de câncer, dizem os entendidos!
Antes desse entendimento moderno sobre as relações entre as emoções e o corpo, porém, os povos bíblicos já se utilizavam de partes do corpo para explicar os processos emocionais e mentais. Tinham uma clara compreensão da relação entre a emoção e o físico. Não dá para separar a totalidade do nosso ser das emoções que expressamos.

Coração limpo (v.1)
Em nossa cultura, o coração está ligado aos sentimentos. Mas para o povo hebreu, esse órgão tinha outras funções. A racionalidade que hoje atribuímos ao cérebro era a característica mais marcante do “coração” para o povo bíblico. Ele não era somente indispensável, por suas funções biológicas, mas a fonte da moral, da ética, dos valores mais elevados, tanto nos aspectos físicos quando espirituais. Vejamos Jeremias 31.33: “Eu pus minha lei nas suas entranhas e eu as escrevi sobre seus corações”. Com o coração, o povo de Deus definia a inteligência, a reflexão, a meditação, a racionalidade: “Que as palavras da minha boca e a meditação do meu coração sejam agradáveis a ti, Senhor, rocha minha e redentor meu”, disse o salmista.
Segundo Asafe, Deus ama os limpos de coração. Não aqueles que sentem boas coisas, mas as pessoas conduzidas racionalmente por valores corretos e justos aos olhos do Senhor. Por isso é que a Bíblia muitas vezes afirma que o coração humano é enganoso. Não pelo que ele “sente”, mas pelo caráter da pessoa que ele designa.
A palavra “leb”, que designa coração em hebraico, é muito importante. Ela e suas variantes aparecem 858 vezes no Antigo Testamento, referindo-se 814 vezes ao “coração” humano. Do mesmo modo, outras palavras mencionadas neste salmo vão nos mostrar como o próprio corpo demonstra as emoções e disposições da pessoa, no todo da sua vida e diante de Deus também. Senão, vejamos:

Por pouco me resvalaram os pés e me desviaram os passos (v.2)
Na Bíblia, muitas vezes a referência a pés, caminho, passos, veredas e palavras similares a essa designam o reto proceder, um senso de direção na vida, propósitos e alvos da pessoa. Quando se caminha com firmeza, significa que a pessoa está no controle da situação. Deus firma os pés daquele que não tem convicção do que está fazendo, devido à sua muita tristeza ou aflição (Salmo 40, Habacuque 3). Se o coração (mente, razão) está firme, então os passos (postura, modo de agir) não vacilam.
As convicções do salmista foram abaladas e isso reflete na maneira como ele age e conduz suas ações. Isso é um exemplo para nós do processo que Tiago, já no Novo Testamento, fala a respeito da concepção do pecado: os olhos (fonte do desejo) vêem; o coração (mente e razão) absorve e engendra e o corpo todo age conforme essa disposição, transformando o pecado em algo concreto, tangível e, portanto, efetivado (Tiago 1.15). É por isso que um coração puro pode levar a pessoa a uma vida inteira de virtude. Se a sede da racionalidade, da motivação, dos valores é pura, então todo o corpo sentirá e agirá de modo coerente a essa disposição.

Lavei as mãos na inocência (v.13)
Em diversos textos bíblicos, o uso do termo “mãos” indica as ações concretas que a pessoa tem. Lavar as mãos na inocência é agir de modo livre de culpa, a pessoa pratica coisas que sabe serem as mais justas, honestas. Se os pés indicam a retidão do caráter, a postura mesma da pessoa, as mãos significam suas ações, aquilo que ela efetivamente realiza. Frequentemente, temos esse tipo de leitura no mundo do Antigo Testamento. Toma-se uma parte da pessoa pelo seu todo: pés, mãos, coração, rins indicam não apenas partes biológicas, mas partes espirituais, morais, éticas e emocionais do ser humano.

Minhas entranhas se comoveram (v.21)
Algumas traduções usam aqui a palavra “rins”. Elas significam o centro emocional da pessoa, os aspectos psicológicos do ser. Equivalem ao coração no sentido em que o usamos em nossa cultura. É interessante pensar na relação feita pelo povo bíblico, uma vez que este é o órgão que filtra as impurezas do ser. Se ele não funciona adequadamente, todo o corpo pode se infeccionar e morrer. Se as emoções não são saradas, elas podem determinar o fim de nossas racionalizações (coração), de nosso caráter (pés) e de nossas ações (mãos).

Um corpo que sente
Existem muitas outras partes do corpo usadas figurativamente na Bíblia para falar do todo do ser, mas vamos ficar por aqui. Muita gente às vezes “psicologiza” demais (com todo o respeito a essa importante área do conhecimento humano), e termina, em certa medida, por desprezar algo que na Bíblia é muito importante: o todo do ser. Quem se fragmenta demais, perde a si mesmo no caminho. Temos supervalorizado nossos desejos e emoções a tal ponto que destruímos nossos corpos. Não é o que acontece quando nos entregamos à promiscuidade sexual, ao uso indevido de drogas, às bebidas, às paixões avassaladoras? Quanta gente, ao final desses processos, está com o corpo totalmente estragado porque não soube conduzir suas emoções? Basta dar uma olhada nas “celebridades” de nosso tempo. Tanto valorizam a busca dos sentimentos que se esquecem e deterioram seu corpo. É importante recuperar esse sentido para nossos dias.
O próprio salmista, ao olhar os maus, desejar ser como eles e frustrar-se com suas próprias posturas, fala de como seu corpo sentiu todo o processo: fraqueza (v.2); cólicas (v.21) e uma fala geral que lembra um processo depressivo, pois é feita em tom de desânimo e entrega.
Talvez devamos resgatar hoje a comparação hebraica e ver as emoções pelo prisma dos rins. Filtrá-las, limpá-las, extrair o que sustenta e jogar fora o que não presta. Emoções boas e límpidas nos encaminham à realização. Emoções negativas infeccionam o ser e levam à morte, em qualquer sentido que seja. Os rins nos ensinam que é preciso encarar os sentimentos e realizar o devido processo de limpeza, que nos permitirá extrair apenas o melhor. Usando seus rins no santuário de Deus, purificando seus sentimentos na meditação na Palavra, o salmista alcançou a verdadeira esperança. Caso algo acontecesse ao seu corpo (v.26), seu interior estaria revigorado pela presença de Deus. Quando as emoções vão bem, o corpo se renova. Quando vão mal, o corpo se entrega. Talvez se possa explicar bem isso em termos científicos. Mas a experiência do povo de Deus já nos mostrou, na prática, que é preciso e possível, com a força de Deus, ter uma ‘mente sã’ num ‘corpo são’...

O povo do coração aquecido

“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38) Uma experiência de mais de um dia John Wesley era um jov...